domingo, 4 de dezembro de 2011

Uma espiritualidade para o nosso tempo. Experiência que brota da Palavra de Deus e da contemplação da realidade


 Mercedes Lopes, mjc[1]
 
De maneira inédita e até mesmo contrária a certas previsões, o final do século XX e a primeira década do século XXI caracterizam-se pelo interesse generalizado em relação ao espiritual, a tudo o que transcende a realidade desafiadora e complexa deste mundo globalizado. Rápidas e profundas transformações modificam a compreensão do mundo e a capacidade humana de situar-se nele. Nesse cenário surge uma variedade enorme de movimentos de renovação espiritual, ligados a diferentes religiões, e aparecem também buscas independentes de encontrar orientação, sentido e força para viver tal momento de transição e desafios históricos. Por isso tanto interesse, hoje, pelo tema espiritualidade.
Sendo muitas e variadas as tendências dessa busca, cada grupo tem uma idéia diferente quando se refere à palavra espiritualidade. Muitos a entendem simplesmente como algo relativo ao sobrenatural ou mesmo como um bom fluido que resgata as energias perdidas e provoca a cura de doenças. Para algumas pessoas, a espiritualidade é uma ajuda para agüentar os sofrimentos da vida e a buscam pelos mais diversos caminhos, como o do pentecostalismo, do esoterismo, de práticas próprias das religiões orientais, como, por exemplo, a meditação transcendental etc. Na realidade, todos procuram espaços que garantam uma boa qualidade de vida nesta tumultuada e complexa realidade do mundo de hoje.
Com tanta demanda, a espiritualidade torna-se mais um artigo de consumo que se encontra na TV, na internet, nos shoppings e nos grandes acontecimentos mundiais, comprometidos com o mercado global. Nesse contexto estão em moda os shows celebrativos, seja em rituais de grupos religiosos, seja na realização de grandes eventos esportivos. Mas esses belos shows litúrgicos, tão bem preparados, não compreendem as dimensões mais profundas do ser humano na sua busca de encontro pessoal com Deus, nem expressam o grande mistério de sofrimento e de felicidade que as pessoas experimentam em seu dia-a-dia.
Nas igrejas, há uma liturgia do espetáculo, que parece fugir da realidade. Uma liturgia mais preocupada com a aparência, com a estética, com o efeito que os sons, o colorido e os gestos causam nos "espectadores". A liturgia show não celebra a vida cotidiana, em que as pessoas de fé experimentam a presença de Deus chamando-as à vida e pedindo que se coloquem a serviço do seu projeto de vida em plenitude para todas as pessoas (Jo 10,10). Ao contrário, ela expressa uma religiosidade que busca, pede, implora e celebra acontecimentos extraordinários, porque não pode suportar o mistério de um Deus que se esconde e se revela no ordinário da vida.
Também a Vida Religiosa Consagrada torna-se, às vezes, consumista dessa espiritualidade show e nela gasta o tempo que poderia ser usado para partilhar as experiências de Deus, vivenciadas no cotidiano das comunidades religiosas ou para colocar-se em projetos criativos e articulados a fim de cuidar e defender a vida dos pobres e do meio ambiente. Dessa maneira, a VRC vai-se distanciando da fonte de onde brota a água viva, do seu sentido e da sua raiz, que é o seguimento de Jesus Cristo. E a espiritualidade do seguimento que sustenta a VRC na busca de ser fiel à sua vocação mítico-profética, colocando-se radicalmente a serviço da vida, a exemplo de Jesus de Nazaré.
Tal entrega audaciosa somente será possível se for sustentada por uma íntima relação com o Jesus dos evangelhos, isto é, pela mística do discipulado. Na intimidade diária com Jesus, o Cristo, a VRC cultiva uma espiritualidade encarnada e profética, centrada na Palavra de Deus e na mística do discipulado, aberta à diversidade cultural, religiosa e de gênero.[2] E disso que vou tentar falar neste artigo.
 Espiritualidade que brota da contemplação da realidade
Toda contemplação começa na dureza do real, da vida cotidiana, onde está permanentemente conosco o Cristo vivo: "Eis que estarei com vocês todos os dias até a consumação dos séculos" (cf. Mt 28,20). A convicção desta presença fiel de Cristo na dureza do real impede a VRC de cair na tentação de fugir das situações desafiadoras, em que somente se escuta o silêncio de Deus. Para cultivar uma espiritualidade encarnada e profética, é preciso aceitar o escândalo da cruz como manifestação do amor sem medida de Deus! (ICor 2,1-5).
Mas a imagem de um crucificado sangrando, impotente diante dos que o torturam, humilhado e abandonado, é um desafio grande demais para o imaginário simbólico da cultura do mercado global. Quem consegue contemplar a glória de Deus na carne de um crucificado? (Jo 12,28). Que glória pode ser contemplada em um corpo todo ferido, repugnante ao nosso olhar? Há tantos corpos semelhantes, importados das periferias do mundo pelos meios de comunicação! São corpos que passam rapidamente pelas telas da TV, apenas por toleráveis segundos, para seguir sem alívio em direção à morte![3]
No entanto, uma espiritualidade encarnada é expressão da fé, da certeza de que dos corpos crucificados emana um brilho, uma luz muito mais instigante e duradoura do que a das imagens maquiadas que aparecem na TV e nas revistas, sorridentes por terem conquistado o êxito que a nossa cultura tanto valoriza.
Para ter essa fé, essa certeza, é preciso fazer experiência de proximidade com esses corpos feridos. Vendo-os de longe, pelas imagens da TV, nas telas dos computadores ou pelas vidraças dos carros, sentimos apenas medo ou repugnância. Não chegamos a fazer a experiência que muda completamente o nosso olhar, como aconteceu com a comunidade dos discípulos de Isaías: "Assim como se pasmaram diante dele, tão desfigurado estava o seu aspecto humano, assim estremecerão muitas nações. Reis fecharão a boca, pois verão aquilo que não lhes foi contado e compreenderão aquilo que não escutaram" (Is 52,14-15).
A dor dos pobres e inocentes, a repressão contra as pessoas que reclamam justiça e direitos iguais para todos podem ser a denúncia mais forte, a luz que de repente ajuda a ver e a analisar uma realidade maquiada pelo poder do capital que controla a mídia. Porque, quando entramos em contato direto com a realidade, inseridos no meio de pessoas bem concretas, cujos corpos podemos tocar, cuja dor penetra nossas entranhas, o véu que cobre e esconde a realidade cai! Ver de perto a dor dos corpos indefesos e escutar seus clamores nos desperta da apatia e nos dá um sobressalto!
Tomamos um susto ao lembrar que seguimos Jesus de Nazaré, que abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida comum de um ser humano, ele foi humilde e obedeceu a Deus até a morte — morte de cruz (cf. Fl 2,7-8).3 Tendo-se entregado radicalmente, o Pai o levanta da morte, o ressuscita, para que esteja vivo entre aqueles e aquelas que o seguem, pelos séculos dos séculos (cf. Mt 28,20). A ressurreição é o carimbo e a assinatura de Deus no projeto de Jesus.
 Espiritualidade encarnada e profética
Uma espiritualidade encarnada é conseqüência desse encontro com o real, com os corpos crucificados pelo sistema excludente do mercado global. Essa aproximação comprometida com a vida dos pobres possibilita uma compreensão mais profunda do mistério da encarnação, superando a velha e ideológica visão de mistério como algo que não podemos penetrar. Essa compreensão do mistério levou-nos a admirar e a contemplar a encarnação de Jesus sem perceber todo o seu significado para a vida humana. Na encarnação de Jesus, Deus assume a humanidade, a corporeidade, a condição histórica de cada pessoa neste mundo.
No mistério da encarnação, Deus se identifica com a humanidade que sofre e também com a humanidade que se alegra, experimentando, em Jesus de Nazaré, o cansaço, a fome, a sede, a dor da perda de um amigo, a angústia diante da morte. No mistério da ressurreição de Jesus, Deus manifesta que todo corpo é templo do Espírito (cf. 1Cor 3,16; 6,19; Ef 2,22), proclamando mais uma vez sua máxima dignidade. E o espírito de Jesus Cristo ressuscitado que resgata e recria os corpos feridos e os confirma para sempre como sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26-27).
Assumir que Jesus veio em carne é profecia atual, porque não nos permite ver indiferentemente os corpos que são transformados no lixo humano do sistema de mercado. Desde o começo do cristianismo houve a tentação de negar que Jesus Cristo veio em carne. A comunidade joanina enfrentou-se com pessoas que negavam a encarnação de Jesus, chamando-as de "anticristos" (cf. 2Jo,7). Para a comunidade joanina, o critério para a verificação da fé cristã está no assumir que "o filho de Deus veio em carne" (1Jo 4,2). Nessa verificação a comunidade joanina relaciona cristologia e ética (1Jo 4,20). Uma ética fundamentada no amor e no reconhecimento da presença de Deus em todas as pessoas.
É o Espírito de Deus que possibilita a verdadeira confissão de fé em Jesus, que veio em carne (cf. 1Jo 4,2-3), que tomou corpo e que nos possibilitou ser verdadeiramente imagens de Deus (cf. Gn 1,26-27). Negar que Jesus veio em carne é negar que Deus é capaz de fazer além, infinitamente além de tudo o que nós podemos pedir ou conceber (cf. Ef 3,20). É negar que para Deus nada é impossível (cf. Lc 1,34). Afirmar a encarnação de Deus é afirmar que outro mundo é possível, que é possível outra VRC mais ágil no anúncio do Reino, mais liberta e libertadora.
Uma espiritualidade encarnada somente é possível quando se vive no âmago da história, ainda que esta seja contraditória e desafiadora, como no tempo de Jesus. E dentro dessas contradições que se vive o amor autêntico, solidário, generoso: "A pessoa autenticamente espiritual não é aquela que tem experiências espirituais extraordinárias, mas sim aquela que vive profundamente o amor ao próximo e o respeito ao próximo. Ser cristão é viver o amor pelo outro, no diálogo e no respeito, aberto ao futuro (= utopia)".[4]
Sim, existe atualmente um grande interesse pela espiritualidade e por tudo o que contribui para encontrar sentido e orientação para viver neste mundo marcado pela complexidade. São muitas e variadas as tendências, interpretações e vivências das experiências espirituais; porém, a verificação dessas experiências se dá na prática da pessoa que assume sua corporeidade como expressão e revelação do mistério que a habita. Consciente de ser presença de Deus na história, vive a solidariedade carinhosa e cuidadora dos corpos empobrecidos, excluídos, feridos e maltratados, como o fez Jesus de Nazaré, até chegar a dizer como o apóstolo Paulo: "Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim" (Gl-2,20).
 Espiritualidade centrada na Palavra de Deus
Hoje, a Palavra de Deus interpela a VRC para que avance em direção ao desconhecido, onde nos esperam multidões de pessoas em situação de risco. Avance em direção às novas formas de solidariedade, de testemunho, de fé comprometida, alegre e audaciosa! "Diga a esta geração, avance!"(Ex 14,15).[5] Diante dessa interpelação, muitas vezes a VRC sente-se sem criatividade ou sem forças para dar passos novos em direção a um futuro sem rumo, sem caminhos traçados, sem garantias de sucesso. A única garantia é a da Palavra que a convoca, jogando luz sobre a exigente situação do momento atual.
Se procurarmos conhecer a história das congregações religiosas, chegaremos à conclusão de que a maioria delas nasceu de uma profunda experiência de Deus, mediatizada pela Palavra e pelos clamores dos pobres, em momentos críticos da história. A inspiração primeira que levou homens e mulheres a reunir companheiros e companheiras para concretizar um carisma, um dom de Deus para a Igreja ao serviço do Reino, tem sua fonte na Palavra de Deus e na compaixão pelo sofrimento dos pobres. Essas experiências bonitas, variadas, diferentes em cada época e relacionadas às experiências de Deus e às histórias pessoais, são tão fortes que mudaram os rumos da vida de muitas pessoas, gerando novos e confiáveis sinais da presença de Deus no mundo.
Desde a segunda metade do século XX houve um resgate da lectio divina pelos pobres das comunidades cristãs da América Latina.[6] Quando eles lêem a Bíblia em comunidade, levam para dentro dela seus problemas e suas perguntas, que brotam do chão da vida cotidiana. Essas questões vitais expressam o desejo de encontrar saídas para as situações difíceis, fortalecendo a união e a esperança na caminhada. Ao fazer a leitura bíblica ligada à vida, o olhar da comunidade de fé vai-se transformando e as descobertas levam à partilha e ao compromisso de vida. Nesse processo a comunidade vai tecendo uma espiritualidade centrada na Palavra e geradora de solidariedade articulada, alegre e criativa.
Por meio dessa maneira de os pobres lerem a Bíblia, Deus nos devolve o caminho para chegar à fonte que gerou nossos institutos religiosos, que foi a experiência de Deus através da sua Palavra e do clamor dos pobres. Para retornar a essa fonte colocamo-nos à escuta da Palavra também na vida, na natureza, na história (DV, n. 3). E "a leitura orante da Palavra de Deus escrita na Bíblia que nos ajuda a descobrir a Palavra de Deus na vida".[7] Assim, a leitura da Palavra vai transformando nosso olhar e nosso coração, para que sejamos de fato discípulos e missionários de Jesus Cristo em meio às profundas transformações e aos grandes desafios que envolvem a humanidade hoje.[8]
Interpelada pela Palavra de Deus, que ocupa um lugar central em sua vida, a VRC assume o discipulado no serviço à vida, fortalecendo a inserção nos meios populares e gerando novos espaços de solidariedade e cidadania.[9]
 Espiritualidade que testemunha as novas relações do Reino
A espiritualidade cristã é a expressão de uma experiência de encontro com Deus a partir do mistério mais autêntico e profundo do próprio ser, abrindo-se confiantemente à alteridade,[10] para estabelecer uma relação de acolhida e de paz com o diferente. Embora toda espiritualidade cristã tenha como base um encontro pessoal e íntimo com Jesus de Nazaré, através dos evangelhos e presente nos pobres, na comunidade, nos acontecimentos da vida cotidiana, ela tem também algo característico de cada pessoa e por isso podemos falar de espiritualidade franciscana, teresiana, beneditina etc.
Cada uma dessas pessoas, Francisco, Teresa, Bento etc., teve uma relação única, pessoal e profunda com Jesus. Fizeram uma experiência que marcou suas vidas e lhes deu uma dimensão peculiar dentro da espiritualidade cristã. Encontros gratuitos com Deus presente nas mais variadas e desafiadoras situações cotidianas são geradores de espiritualidade. Nesse sentido a espiritualidade é reveladora de relações profundas que marcaram a pessoa e que lhe deram uma dimensão nova e ampla da vida, de Deus e dos outros.
Se nos abrirmos aos outros e nos deixarmos confrontar pelas diferenças que existem nas comunidades religiosas, na sociedade e na Igreja, descobriremos riquezas que jamais poderíamos imaginar. Experiência que se torna impossível quando se fica na defensiva, nas comparações, nas mágoas e decepções ou na relação competitiva. Quando alguém se abre a uma relação pessoal com Deus, vai descobrindo o mistério profundo do seu próprio ser (Sl 139) e se maravilha com a experiência de ser amado incondicionalmente por Deus. E dessa relação que nasce a espiritualidade cristã. Ela tem uma base comum, que é Jesus Cristo (1Cor 3,11), embora haja sempre características muito pessoais, segundo a história de vida e a identificação com o carisma congregacional.
A entrega cotidiana e apaixonada na defesa e cuidado da vida dos pobres e do meio ambiente é expressão da autenticidade no seguimento de Jesus, vivendo o amor sem medida (Jo 13,1). A abertura ao diferente, superando os preconceitos de gênero e culturais, criando espaços para o diálogo ecumênico e inter-religioso, na acolhida terna de toda pessoa, demonstra a qualidade da nossa entrega. Essa entrega é o termômetro da nossa espiritualidade!
Questões para ajudara leitura individual ou o debate em comunidade
1. Quais são as experiências de Deus que estão nas raízes da nossa espiritualidade?
2. Que aspectos da realidade tocam nossas entranhas, levando-nos a uma identificação com a entrega total e amorosa de Jesus?
3. Como a centralidade da Palavra de Deus transparece em nossa espiritualidade?
4. Como essa espiritualidade encarnada e profética está nos ajudando a superar bloqueios e dificuldades nas relações cotidianas?
5. Que projetos concretos de serviço ao Reino estão sendo inspirados e sustentados pela mística do discipulado que vivenciamos?
Fonte: CRB, CONVERGÊNCIA, Ano XLIII – nº. 417-Dezembro 2008, 751-759.

[1] Irmã Mercedes Lopes é teóloga e biblista, mestra e doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Endereço da autora: Rua Fátima Goulart, 72, apto. 103, Centro, CEP 26235-120, Mesquita-RJ. Tel.: (21) 2696-0352. E-mail: lopesmercedes@ hotmail.com.
[2] Quadro Programático da CRB 2007-2010, prioridade 2.
[3] BUELTA, Benjamin Gonzales. "Ver o perecer". Mística de ojos abiertos. Santander: Sal Terrae, 2006. pp. 22-23.
[4] KLOPPENBURG, Alex José. Disponível em: www.cebsuai.orgbr/content/view/302/36/ Acesso em: 12 ago. 2008.
[5] Quadro programático da CRB 2007-2010, Horizonte.
[6] Segundo a equipe que elaborou os roteiros do projeto "Tua Palavra é Vida", a lectio divina reapareceu entre nós, sem rótulo e sem nome, na leitura que os pobres fazem da Bíblia. Foram eles que nos despertaram para a leitura orante da Bíblia. Veja mais em: A Bíblia na formação. "Tua Palavra é Vida". Rio de Janeiro-São Paulo: Publicações CRB-Loyola, 2000. pp. 18-19.
[7] A Bíblia na Formação. "Tua Palavra é Vida", cit., p. 266.
[8] Quadro programático da CRB 2007-2010, Horizonte.
[9] Prioridade n. 1.
[10] Compreendemos a alteridade como uma capacidade de encontro entre o ser  humano e a divindade, gerando um processo de humanização e divinização que atinge a totalidade do ser humano, levando-o a estabelecer uma relação de iguais com todas as pessoas, na acolhida das diferenças

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