domingo, 18 de dezembro de 2011

Um fogo novo na Vida religios


ROSA MARIA SEVERINO, FS
A seguinte experiência deixa bem claro que o Espírito Santo está suscitando novas formas de Vida consagrada na Igreja e que essas Novas Comunidades podem iluminar os carismas chamados “históricos”. O fato é que, num ambiente de diálogo trinitário, é possível uma fecundação mútua entre estas realidades. E, com isso, a própria Igreja sai ganhando, ao dar uma resposta viva ao apelo do Papa João Paulo II de “lançar as redes em águas mais profundas” (cf. NMI, 1).
Um dos grandes apelos do final do século XIX, foi a educação da juventude. Para responder a este clamor, nasceu no ano de 1854, em Siessen, no sul da Alemanha, a Congregação das Franciscanas de Siessen. No decorrer da história, principalmente na secularização e períodos de guerras, fez-se necessário encontrar novos modos de educar a juventude. A missão na África do Sul e a vinda para o Brasil,são frutos da corajosa abertura para os clamores dos tempos.
Durante mais de sessenta anos, nossas religiosas foram verdadeiras missionárias na educação e evangelização da juventude, por este Brasil a fora. No entanto, na década de 1980, nasce uma inquietação em relação à tarefa da educação nas escolas. Nos anos 1990, a situação parecia insustentável: falta de vocações, concorrência com outras grandes escolas, crise financeira, entre outras dificuldades. Era o momento de pensar em algo novo.
Várias propostas foram apresentadas, mas sem vibração. Nasce a pergunta: “Mas o que é o novo?” Nesse momento de fragilidade, Deus se apresenta carinhosamente com uma proposta exigente e radical. Ir. Judith Jung, nossa Superiora Geral, conhece Frei Hans Stapel, OFM, que nos apresenta a realidade da Fazenda da Esperança. Aqui inicia um novo caminho. Duas irmãs são enviadas da Alemanha para morar junto com as recuperandas no Centro de recuperação feminino, em Guaratinguetá (SP) e experimentar esse novo jeito de viver o Evangelho, que – como o Papa Bento XVI disse por ocasião de sua histórica visita à Fazenda da Esperança – encontra sua raiz no carisma de São Francisco e na Espiritualidade da Unidade, o carisma do Movimento dos Focolares. Algumas religiosas brasileiras integram-se ao grupo. As jovens formandas também são convidadas a morar junto às recuperandas para experimentar esse fogo novo que vai se alastrando.
Foi fantástico como Deus nos conduziu. Em poucos meses, os três colégios foram vendidos. Então, sentimos que chegara a hora de dar um passo largo e corajoso. Não era possível continuar paradas, olhando para as antigas obras. Em meio a muitas dores, incompreensões, resistências, orações e esperanças nascia uma verdadeira “Aliança” entre a Fazenda Esperança e as Irmãs Franciscanas de Siessen. Mudamos a Sede Provincial de Agudos (SP), bem como a Casa de formação para Guaratinguetá (SP), ao lado do Centro de recuperação feminino. Iniciamos ainda uma comunidade na Fazenda da Esperança no bairro de Pedrinhas, em Guaratinguetá, junto aos rapazes em recuperação e outra em Coroatá (MA), onde as religiosas ajudam nos Centros masculino e feminino e acompanham a realidade dos menores abandonados.
Como em toda a História da Salvação, algumas pessoas deram a vida concretamente para esse novo projeto. Em diversas decisões, precisávamos obedecer sem nada compreender. Ao mesmo tempo, uma nova esperança surgia entre nós.
Eu, à distancia, concordava em parte, pois via a vibração daquelas que estavam mais inseridas. Mesmo assim, era resistente. A maior dificuldade era aceitar que nossas jovens morassem com as recuperandas. Fui convidada a assumir o acompanhamento do noviciado. Certamente movidas pela sabedoria, a Madre Geral e a Provincial pediram que eu fizesse a experiência de morar junto com as meninas. Diante da proposta, foram meses de julgamentos e resistências, ate dobrar meu orgulho e deixar-me conduzir por Deus. Aceitei o desafio. Fui morar no “Centro de triagem”, onde as meninas chegam, todas arrebentadas pelo “mundão”. A casa ficava isolada de tudo, 30 km da cidade, no meio das montanhas. Foi muito difícil. Sentia medo. Um sentimento de inutilidade me dominava. Toda minha experiência de professora, coordenadora, de pastoral de nada valia para aquelas vidas tão destruídas, com as quais não sabia lidar. Logo percebi que eu mesma precisava recuperar-me dos preconceitos, do individualismo e de tantas outras “drogas”. A solução era morrer para os meus esquemas, guardar os livros, viver a Palavra de Deus no dia a dia e obedecer às coordenadoras (uma ex-recuperanda e uma recuperanda que tinha a metade de minha idade). Jamais esquecerei o sorriso de Kely, uma garota de rua, com quem fiz a primeira experiência da Palavra vivida, na cozinha, fazendo pão. Escutar as meninas em suas dores, acompanhá-las no processo do auto-perdão, ajudá-las a experimentar a misericórdia de Deus, mesmo se já fizeram um ou até dez abortos... enfim, algo que me fascina e ajuda manter viva minha espiritualidade e opção pela vida. Deus deu-nos a graça de entender que essa é a melhor escola de formação para as jovens que são chamadas a viver o nosso carisma: abraçar Jesus encarnado, crucificado e ressuscitado. “A presença das Irmãs na Fazenda é muito importante. Elas transmitem paz, dão muito apoio e ensinam a todos que Deus é a única esperança. Elas ajudam, sobretudo, a aceitar as nossas dores” (Dª Cleide – ex-recuperanda – aluna da Escola de Comunhão).
Já se passaram alguns anos que estou nessa aventura. Acompanhar tanto as jovens candidatas, como as recuperandas com suas dores, misérias e perceber como Deus vai agindo em cada uma, é um processo de conversão contínuo. Nosso carisma fica cada vez mais vivo. A cada dia, há oportunidade de “abraçar Jesus Leproso”, como fez São Francisco. Para nossas aspirantes e noviças, a convivência direta com as recuperandas é mesmo uma graça, pois ajuda as formandas no confronto com seus próprios valores e misérias. Dar catequese, falar do Deus da Vida para essas meninas marcadas pelos abusos, abortos, assassinatos etc., só com muito amor e coerência de vida. Não suportam discursos e doutrinas “frias”. A vivência concreta da Palavra e do amor concreto, no cotidiano, as exigências da convivência com suas inúmeras diferenças, garantem um amadurecimento real na vocação. Esse tem sido um dos maiores ganhos para a renovação de nossa Congregação.
“Sou aspirante das Irmãs Franciscanas de Siessen. Minha decisão por esta Congregação foi pelo trabalho das irmãs com jovens na Fazenda Esperança. Fiquei encantada com as experiências que as aspirantes faziam junto às recuperandas. Atualmente, participo da Escola de Comunhão na Fazenda da Esperança. Para mim é realmente uma escola diferente, porque não é só uma escola; é uma família, onde partilhamos nossa alma, colocamos tudo em comum, nos formamos para gerar vida, em Jesus Cristo. Outra experiência marcante em minha vida é a convivência na Casa de Apoio Sol Nascente, para pessoas que têm o vírus HIV. Algumas em cadeira de roda, outras no leito, elas têm muita alegria de viver, mesmo estando tão debilitadas. Estar com elas, é fazer a experiência de Jesus Cristo Ressuscitado” (Maria Pereira dos Santos, aspirante).
“Sou do interior da Bahia. Nunca tive contato com dependentes químicos. No meu aspirantado, fui morar com as recuperandas. No início sofri, mas ao mesmo tempo me encantava ver aquelas jovens, cada uma com sua história difícil e escrava das drogas, vivendo o Evangelho. Era interessante, como ainda tinham sonhos! Com elas, aprendi especialmente reconciliar-me com meu pai, valorizar minha família e viver a Palavra do Evangelho no dia-a-dia. Hoje, no noviciado, sou catequista dessas meninas. É doloroso ver o quanto ainda há jovens sem conhecer Jesus Cristo. E ao mesmo tempo é tão bonito ver a sede que elas têm de Deus e a abertura que dão para a ação de Deus em suas vidas. Essas experiências concretas que fiz com elas, lembram-me São Francisco quando abraçou o leproso. Portanto, essa vida contribuiu muito para o amadurecimento de minha vocação franciscana” (Angelice Portela dos Santos, noviça).
Com o coração agradecido a Deus, posso afirmar que a possibilidade de dar aula na Escola de Comunhão, sobre o Carisma Franciscano e no campo da formação missionária, está me oferecendo uma preciosa oportunidade de atualização.
Outra experiência interessante é o encontro das Irmãs idosas com as recuperandas, seja juntas nos trabalhos manuais, carregando uma Irmã na cadeira de rodas, ouvindo um conselho experiente, rezando ou simplesmente ouvindo umas às outras.
“As Irmãs de Siessen para mim são uma presença de Maria no meio de nós. Formar essa aliança com elas me faz pensar na possibilidade de toda uma comunidade poder se relacionar através de Deus-Amor. Muitas vezes, uma conversa com elas me dá a resposta de que precisava” (Maria Belém, voluntária, aluna da Escola de Comunhão).
Para as Irmãs jovens também surge um novo campo de trabalho, além de ajudar na manutenção da Província, abre um novo modo de anunciar o Evangelho.
“Eu, Ir. Márcia, estudante de Psicologia, tenho a oportunidade de realizar um dos estágios na Fazenda da Esperança. Toda semana faço o trabalho de escuta e percebo a necessidade que estas jovens têm de serem ouvidas, amadas e acolhidas na condição em que se encontram. É uma experiência gratificante e uma forma de conciliar meu trabalho profissional com nosso carisma”.
“Sou da primeira turma de formandas, que veio fazer experiência com as recuperandas. Os desafios foram muitos, mas Deus nos conduziu de modo bem visível. Hoje, como irmã de votos perpétuos, trabalho na Fazenda Esperança como Profissional. Uma experiência que gostei demais foi em Coroatá (MA), junto aos menores, (a Casa dos Menores é uma das filiais da Fazenda Esperança). Acompanhava-os na Fazenda, dando formação humana e espiritual. Porém, trabalhava como assistente social, na mesma escola em que estudavam. Tornei-me o ponto de referência para eles e sempre tinha a oportunidade de defendê-los contra as discriminações e para que tivessem um tratamento justo” (Ir. Marines de Paula).
Ainda gostaria de comunicar que o carnaval, a festa junina e as grandes festas religiosas, são sempre celebradas juntas com o Centro feminino e, com isso, se tornam muito mais uma expressão de “vida”. O bloco de carnaval das Irmãs é um verdadeiro “show”. Todos nós guardamos a lembrança da Ir. Hildegunda, com seus 78 anos, dançando “São João”, toda enfeitada. Agora, ela está no céu!
Como Deus é “escandalosamente” misericordioso para conosco, dando-nos de presente a Casa “Sol Nascente” que acolhe portadores de HIV, na fase terminal. Nossas aspirantes fazem experiências com eles, rezando junto, dando catequese, e sendo uma presença mariana naquela casa. Com a morte do Sr. João Rozendo, o fundador, assumimos a coordenação geral. Ali podemos vivenciar o amor gratuito proposto por São Francisco: “E devem alegrar-se quando se acharem entre pessoas vis e desprezadas ou entre os pobres, os fracos, os leprosos e junto dos que mendigam pela rua”.
Disponível na revista Unidade e Carismas. Nº 4. 2009

Segunda Parte: A FIDELIDADE, FONTE DE VIDA PLENA


A FIDELIDADE, FONTE DE VIDA PLENA
A Vida Consagrada:
Profecia antropológica na pós-modernidade
Pascual Chavez Villanueva, SDB
Reitor-Mor dos Salesianos

5. A FORMAÇÃO PARA A RENÚNCIA
Finalmente, e ainda em relação à superação do "formalismo", é preciso falar de uma realidade que no nosso tempo mais que em qualquer outro, implica ir “contra a corrente”: a formação para a renúncia. Falando paradoxalmente, é preciso proporcionar a experiência da renúncia. Não é questão de olhar para tempos passados, quando este exercício tinha um caráter totalmente formal: a coisa mais importante era aprender a renunciar... para renunciar, para "avigorar a vontade." Ao contrário, é indispensável redescobrir o valor humano e cristão da autêntica renúncia, para poder viver uma experiência que seja enriquecedora, de maneira que seja assumida positivamente, e não conduza à frustração e à neurose.
Na pequena parábola do comerciante de pérolas preciosas (Mt 13, 45-46), encontramos alguns elementos fundamentais que nos permitem delinear a "fenomenologia da renúncia”:
a) – renuncia-se àquelas pérolas preciosas ("o comerciante vai e vende aquilo que tem") não porque sejam falsas: são autênticas, e constituíram até aquele momento o tesouro do comerciante. Aplicando à nossa realidade, não é certamente um método apropriado aquele que tenta diminuir o valor daquilo a que é preciso renunciar, a fim de que se torne mais fácil. Afinal, renunciar às “coisas más” não constitui a renúncia humana mais profunda e completa. Quantas vezes ouvimos perguntar, como resistência a uma renúncia necessária: “o que há de mal no que estou fazendo?” E tem toda a razão quem fala assim: apenas deve compreender que é justamente então, que se apresenta a oportunidade da renúncia no seu sentido mais autêntico.
b) - renuncia-se a pérolas autênticas, com dor e ao mesmo tempo com alegria, porque encontrou-se "a" pérola definitiva, aquela que encheu os olhos e o coração do comerciante: e ele compreende que não pode adquirir esta, se não vende aquelas. Se a nossa vida consagrada, centrada no seguimento e na imitação do Senhor Jesus, não resulta fascinante, torna-se injusta e desumanizante a renúncia que exige... como diz esplendidamente Potissimum Institutioni: "Somente este amor de caráter nupcial e que implica toda a afetividade da pessoa, permitirá motivar e sustentar as renúncias e as cruzes que encontra necessariamente aquele que deseja ‘perder a sua vida’ por causa de Cristo e do seu Evangelho (cfr. Mc 8, 35)” (n. 9).
c) - a alegria pela posse da "pérola preciosa" nunca elimina completamente o medo de que não seja autêntica: na hipótese de ela ser falsa, a minha decisão teria sido errada, e teria arruinado minha vida. Este "risco" na vida cristã, e mais ainda, na vida consagrada, é uma conseqüência direta da fé; somente na fé tem sentido a nossa vida: se não é verdade aquilo em que acreditamos, "somos os mais infelizes de todos os homens ", parafraseando São Paulo (cfr. 1Cor 15, 19). O dia em que, em qualquer dimensão da vida consagrada, se puder dizer: a "minha vida é plenamente gratificante, mesmo se não é verdade aquilo em que creio", o nosso Instituto se torna... uma ONG, com a agravante que implica certas exigências inaceitáveis para os seus membros...
d) - Jogando de novo com as palavras, não se deve apenas proporcionar a experiência da renúncia, mas também, em muitas situações, é necessária a renúncia à experiência, uma das coisas mais difíceis de entender e aceitar, hoje. Pensamos, por exemplo, no campo afetivo (e sexual): há aqueles que pensam, com as melhores intenções, que a renúncia lhes resultará mais fácil se viverem a experiência correspondente: "ao menos, sei a que renuncio." No fundo, tratase de uma miragem: não podemos seguir todas as diferentes estradas que a vida nos oferece, para escolher depois, numa etapa sucessiva, a que devemos seguir. O que é decisivo – e que uma sólida formação deve proporcionar – é que a pessoa assuma com maturidade esta decisão (palavra que conota, na sua etimologia, "cortar"), e não lamente, durante toda a vida, aquilo que nunca provou, tendendo assim, inevitavelmente, a superestimá-lo: o fruto proibido é sempre o mais desejável.

6. O CONTEXTO ATUAL: A PÓS-MODERNIDADE
Esperando que o que dissemos até agora exprima, de um ponto de vista específico, a situação antropológica da vida consagrada, é mister perguntar-nos: tudo isto constitui uma verdadeira novidade, com respeito a outros tempos? Ou se trata somente, como indicávamos no início, de uma tematização de aspectos que sempre estiveram presentes, ao menos implicitamente?
É evidente que não podemos falar de uma absoluta "novidade", porque seria ignorar que, como seres humanos, temos uma indubitável homogeneidade de base, que se manifesta em todo tempo e lugar. Utilizando uma expressão de Mircea Eliade, é preciso dizer que temos a mesma "estrutura arquetípica" ou, empregando uma imagem mais simples: ainda que a fotografia de cada um fosse muito diversa, a radiografia seria muito semelhante.
Todavia, já que se fala hoje de uma era nova e qualitativamente distinta na história da humanidade, deve implicar fatores que, ao menos na sua maior ou menor incidência, mudaram radicalmente. Concretamente, farei referência a um que concerne plenamente ao nosso tema.
O ser humano, embora viva sempre no presente (é uma verdade lapalissiana), é um "ser de futuro" (E. Bloch, W. Pannenberg): pela própria natureza, é colocado defronte do utópico, daquilo que ainda não "tem lugar" no nosso mundo e na história. Isto pode-se dizer, a fortiori, das gerações jovens, que recebem esta orientação para o futuro da sua própria identidade psicosomática, inscrita até na célula mais “humilde”.
Por isso, constatamos na situação pós-moderna uma tragédia: a ameaça de futuro que pesa sobre a humanidade coloca, sobretudo esta geração jovem, diante de uma contradição existencial: de um lado, com uma exigência irresistível de um horizonte de futuro, e do outro, com a carência deste horizonte. Se a esta atitude acrescentamos a recusa do passado por parte da cultura jovem atual, podemos entender a sua sensação de estar “encerrada” no espaço mínimo que lhe permite o presente, sem outra solução senão tentar "viver o instante que foge" (o átimo fugaz).
Esta ameaça manifesta-se duplamente: de um lado, naquilo que J. Moltmann chamou “a perda da inocência atômica" de Hiroshima em diante5: sabemos – e as notícias mais recentes no-lo recordam ainda – que desde alguns decênios, e pela primeira vez na história do mundo e do homem nele (pelo que sabemos), existe a possibilidade real (que depende, em concreto, da decisão de algumas pessoas) que desapareça a humanidade inteira, como conseqüência de uma conflagração nuclear. O fato de os chefes das nações chegarem a eventuais acordos a este respeito não elimina o perigo: como diz o próprio Moltmann, não recuperaremos jamais a inocência perdida. "A época em que vivemos é, mesmo se tivesse de durar até o infinito, a última época da humanidade... Vivemos no tempo do fim, isto é, daquela época na qual todo dia podemos provocar seu fim"6.
Por outro lado – e não totalmente deslisgada da precedente – encontramos esta ameaça na degradação ecológica, universal e irreversível: pensamos na poluição do ar, na diminuição da água doce, na destruição das matas, no vertiginoso aproveitamento das energias não renováveis.
Como diz o mesmo Moltmann, "todos somos iguais... defronte do buraco de ozônio." Esta "supressão de fora" do horizonte de futuro é um fator típico do nosso tempo, e é fundamental para compreender o obsessivo apego ao presente, e a necessidade de “satisfações” imediatas que caracteriza a era pós-moderna: pois não é a mesma coisa "querer viver o hoje” na perspectiva do amanhã, que ter de ancorar-se no hoje, porque talvez não haverá um amanhã...
Dias atrás um jornal, a respeito de uma recensão de um livro do Prêmio Nobel de Literatura, o escritor h’úngaro Imre Kertész, utilizava esta expressão: “É possível ter filhos depois de Auschwitz"? (evocação da célebre frase: "É possível crer em Deus depois de Auschwitz"?). é a pergunta que hoje se colocam tantos jovens diante do matrimônio e da família: não com um sonho de outros tempos, mas com a angústia diante do futuro no qual lhes caberá viver; vale então a pena trazer novos serres ao mundo? É incontestável que esta "privação de futuro", num sentido muito diferente, atinge também a vida consagrada, em particular as novas gerações.
7. “...EU ESCOLHO TUDO...!”
Poder-se-ia continuar aprofundando o tema da pós-modernidade, mas remeto aos estudos especializados que Vocês bem conhecem. Gostaria, porém, de convidá-los a refletir sobre o presente e o futuro imediato da vida consagrada, mais do que com conceitos teóricos, contemplando uma figura de santidade tipicamente atual na Igreja: Santa Teresinha de Lisieux.
Entre as suas diversas experiências, hoje se sublinha, com justa razão, a da incredulidade e do ateísmo que a santa viveu no final da sua vida, que soube descobrir como dom de Deus e assumir de forma extraordinariamente positiva, como solidariedade com "os distantes de Deus."
Agora desejo ressaltar um outro aspecto. Entre as muitas lembranças da sua infância, uma, aparentemente banal, é particularmente significativa. Um dia, sua irmã Leônia, pensando que era grande demais para brincar com boneca, foi ao encontro das outras com um cesto cheio de roupinhas e de retalhos destinados a fazer bonecas, para cada uma das irmãs escolher. Quando chegou a vez de Teresinha, ela mesma conta: "Estiquei a mão, dizendo: Eu escolho tudo!, e tomei o cesto sem muita cerimônia”7. Poderíamos chamar isto de atitude tipicamente "pósmoderna", de quem não quer renunciar a nada.
Não se trata de uma manifestação infantil de egoísmo: creio que antes exprime um traço muito profundo da sua personalidade. Com efeito, muitos anos depois, num dos momentos mais importantes do seu discernimento espiritual, aflora novamente este anseio em páginas que se tornaram clássicas na espiritualidade cristã: "Sinto em mim outras vocações: sinto a vocação de guerreiro, de sacerdote, de apóstolo, de doutor, de mártir; em suma, sinto a necessidade, o desejo de realizar por ti, Jesus, todas as obras mais heróicas... Sinto na minha alma a coragem de um cruzado, de um zuavo pontifício: gostaria de morrer num campo de batalha pela defesa da Igreja (...). Como conciliar estes contrastes? como realizar os desejos da minha pobre pequena alma? (...) Durante a oração os meus desejos me faziam sofrer um verdadeiro martírio.
Abri as epístolas de São Paulo para procurar alguma resposta (...) Li que nem todos podem ser apóstolos, profetas, doutores, etc.; que a Igreja é composta de diversos membros, e que o olho não poderia ser ao mesmo tempo a mão... a resposta era clara, mas não satisfazia os meus desejos, não me dava a paz (...). Sem desencorajar-me continuei a leitura e esta frase me reanimou: 'Procurai com ardor os dons mais perfeitos: mas eu vos mostrarei um caminho ainda mais excelente.' E o apóstolo explica como todos os dons mais perfeitos nada são sem o Amor (...) Finalmente eu tinha encontrado o repouso! (...) A caridade deu-me a chave da minha vocação (...) Entendi que só o amor fazia agir os membros da Igreja: que se o amor devesse extinguir-se, os apóstolos não mais anunciariam o Evangelho, os mártires recusariam derramar o seu sangue... Entendi que o amor encerrava todas as vocações, que o amor era tudo, que o amor abrangia todos os tempos e lugares... Em suma, que o amor é eterno! Então, no excesso da minha alegria delirante, exclamei: Ó Jesus, meu Amor...! Encontrei finalmente a minha vocação! A minha vocação é o Amor"!...8
Só na medida em que centramos todo o nosso ser no amor a Deus e ao próximo, e fazemos com que a formação inteira, pela vida a fora, tenha a finalidade de crescer no amor, obteremos aquilo que parecia impossível: ter “o todo no fragmento” (evocando Von Balthasar).
Poderemos assim realizar, na limitação, na rotina e na "unicidade" da nossa vida, a totalidade da vocação cristã: compreenderemos que no amor se realiza o paradoxo extraordinário de sermos capazes de renunciar a tudo e, ao mesmo tempo e precisamente por isso, não renunciar, afinal, a nada daquilo que nos permite atingir a nossa plena realização; assim o entendeu e o viveu a pequena santa do Carmelo...
8. A FIDELIDADE NA ERA PÓS-MODERNA
Tudo o que dissemos, afinal, procura situar e robustecer nossa fidelidade consagrada, no tempo difícil e fascinante em que vivemos. Mencionávamos já desde o início que certamente a cultura atual não favoresce a prática da fidelidade: até mesmo, em alguns ambientes, a fidelidade matrimonial é quase uma "exceção."
A motivação bíblica a este respeito é imensa e fascinante. A palavra hebraica que se traduz geralmente por "fidelidade", hésed, conota em primeiro lugar, sobretudo quando se aplica a Javé, a solidez, a força, a persistência no tempo, em contraste com a fragilidade das promessas humanas. Por conseguinte designa a Aliança, tanto no seu aspecto "jurídico", como sobretudo na motivação fundamental que a torna possível, ou seja a solidez do amor de Deus. Neste sentido, comenta um grande exegeta: “A coisa mais maravilhosa para o povo de Israel, não é tanto que Deus o ama, e sim o fato que esse amor seja fidel, duradouro, apesar de tudo" (E. Jacob).
Há dois salmos que, em particular, cantam esta fidelidade do amor de Deus: o 117 (116) que, na sua brevidade, é uma verdadeira jóia: "Louvai o Senhor, povos todos (...) porque forte é o seu amor por nós, e a fidelidade do Senhor dura para sempre”.
De modo semelhante, o "grande Hallel" (136 [135]), não canta tanto o amor divino, mas sim sua fidelidade: “porque eterno é seu amor." Esta garantia do amor de Deus que é firme, sólido, fiel, encontra a sua plenitude no Novo Testamento, na nova e eterna Aliança, em Jesus Cristo.
A vida consagrada é, na sua essência mais profunda, aliança nupcial com Deus e conta com a garantia de sua parte; infelizmente, o "parceiro" humano da Aliança pode falhar; mas mesmo neste caso, "Ele permanece fiel, porque não pode negar-se a si mesmo" (2Tm 2, 13).
Seria muito enriquecedor tentar situar a fidelidade dentro do "paradigma" da
historicidade. Sendo impossível desenvolvê-lo longamente, mencionarei apenas alguns aspectos relevantes.
No início falamos do caráter permanente da formação, o seguimento e a imitação de Jesus Cristo "até a morte." Todavia convém aprofundar esta "permanência" para não acontecer conosco como com tantos casais que continuam a viver unidos por "inércia", embora tenha desaparecido o núcleo que dava sentido à sua aliança, o amor. Se partimos da convicção de que "a formação é a resposta livre à vocação", podemos deduzir a seguinte conclusão: somente pode existir a formação permanente se existe também a experiência da vocação permanente. O Senhor não nos chamou há 10, ou 20, ou 50 anos: chama-nos hoje, desde há 10, ou 20, ou 50 anos. Unicamente esta experiência alegre do Deus que nos ama e nos chama, torna possível uma resposta igualmente alegre e cheia de fidelidade. De maneira quase imperceptível incluímos aqui a historicidade, a experiência, a liberdade e a realização pessoal em Cristo.
Resta, porém, um problema ao qual a geração atual é particularmente sensível. É inegável a generosidade com a qual muitos rapazes e moças se consagram ao serviço dos outros, muitas vezes de forma total; todavia isto acontece por um período determinado de tempo: a coisa mais difícil é assumir um compromisso definitivo, pronunciar um “para sempre”, renunciar por princípio a qualquer outra possibilidade alternativa. “E se a vida me apresenta uma outra estrada? E se chego a encontrar a mulher (o homem) que poderia tornarme feliz? Se as circunstâncias, o lugar, a comunidade, o trabalho em que me encontro agora mudam radicalmente?” Todas estas perguntas têm em comum o fato de fazerem depender a fidelidade de um futuro externo a nós, do qual não podemos dispor. Diante disto, é necessário ressaltar, em todas as etapas da formação (até a morte), que a autêntica fidelidade não depende daquilo que “pode acontecer”, mas daquilo que eu decidi, e que cada dia renovo: o me amor fiel ao Senhor, na entrega total a meus irmãos e irmãs.
A fidelidade tem uma característica típica que a distingue de outras virtudes. Podemos compará-la, no campo das belas artes, com a música em relação à pintura e a escultura: posso contemplar, num só momento, uma bela estátua ou um quadro famoso, mas não posso escutar, instantaneamente, a Nona Sinfonia de Beethoven ou A Flauta Mágica de Mozart: aqui é indispensável o seu “desdobramento” no tempo, a sua "historicidade"... De modo análogo, a fidelidade não pode realizar-se senão como experiência “histórica”. A fidelidade não tem medo do futuro, precisamente porque só nele pode realizar-se como tal; e sobretudo quando se trata da fidelidade do amor e no amor, vive-se em plenitude, mesmo no nível humano, só no horizonte do “para sempre”. É o próprio Nietzsche que afirma: "Toda alegria requer eternidade." Paradoxalmente, aquilo que parecia ser um risco, torna-se a condição indispensável da possibilidade.
Gostaria de terminar este parágrafo com um texto muito bonito, que sem dúvida muitos de Vocês ouviram ou leram alguns decênios atrás. É tirado da famosa Carta sobre o Celibato Sacerdotal, de Karl Rahner. Dirigindo-se ao seu interlocutor, lhe pergunta: "Que valor terão, afinal, para Você esta questão jurídica e todas as previsões jurídicas para o futuro, se Você se mantém fiel à sua vida e às suas decisões fundamentais? No fundo, nenhum.
Permita-me que me exprima francamente e com clareza? Não espero o "futuro", como aquela escultura da catedral de Friburgo que representa uma freira idosa que está mostrando o seu último dente para dar a entender que estava ainda em tempo para casar. Eu já escolhi (...) Sou sacerdote. Jamais me arrependi disto”9.
9. CONCLUSÃO
Se terminasse esta reflexão com um convite a fazer uma relação entre as virtudes teologais e as dimensões do tempo, imagino que pareceria fora de lugar e irrelevante. Tentarei mostrar a sua validade, como conclusão e projeção no futuro.
Diz Cervantes, no Dom Quixote, que não existe livro, por mais feio que seja, que não tenha algo de bom. Aplico isto a uma obra que apareceu nos anos ‘60, e que é considerada a expressão mais radical da “teologia da morte de Deus": o Evangelho do Ateísmo Cristão, do teólogo americano Thomas J. J. Altizer10. Deste livro, as críticas mais benévolas comentaram, ironicamente, que não era nem evangelho, nem ateísmo, nem cristão. Todavia, no final o autor lança um desafio (tal é o título do último capítulo) que podemos aceitar e que permitirá compreender melhor o que queremos dizer.
O autor coloca "as virtudes teologais" (sem chamá-las deste modo) em estreita relação com as dimensões do tempo: a fé com o passado, a esperança com o futuro, o amor com o presente; depois afirma: quem quer basear-se na fé se ancora num passado anacronístico; quem vive na esperança, se aliena refugiando-se num futuro inexistente; é pois necessário rejeitar ambos os modos, para viver no contínuo presente do amor; a esta alternativa se reduziria a vida cristã, segundo Altizer. De algum modo esta mesma idéia encontra-se na interpretação pósmoderna da Encarnação do Filho de Deus em Gianni Vattimo, no seu livro Credere di Credere.
Como dizíamos, é sugestiva esta relação entre as virtudes teologais e as dimensões temporais, embora seja inaceitável o seu caráter de "alternativa": ou esta ou aquela. Ao contrário, somente na sua total integração, como tripla atitude teologal, com um sólido fundamento antropológico, estas três virtudes podem encontrar seu sentido pleno. Embora seja indiscutível que a mais importante é o amor, é necessário salientar que não existe amor cristão sem fé cristã e sem esperança cristã: "E seu mandamento é este: que tenhamos fé no nome de seu Filho Jesus Cristo e nos amemos uns aos outros, como Ele nos ordenou” (1 Jo 3, 23).
Em vez de nos queixar do tempo atual, assumamos com confiança no Senhor o desafio que nos propõe: somente a partir de uma fé sólida que alimenta uma "esperança viva" e se manifesta num amor concreto e incondicional a Deus e a nossos irmãos nos quais reconhecemos o rosto do Senhor Jesus, poderá ser relevante a nossa fidelidade na vida consagrada: assim tem sido na tradição de nossos Institutos, a começar dos nossos Fundadores e Fundadoras. Só um presente fiel ao seu passado e aberto ao futuro poderá ser relevante e significativo, no contínuo presente do serviço de Deus e do mundo, por amor.
Um árvore é sadia e vigorosa quando tem raízes que afundam na profundidade obscura da terra; quando o seu tronco se projeta para as alturas, recebendo a seiva que a raiz lhe oferece, e possibilitando em seus ramos o nascimento e o amadurecimento de seus frutos. Sem a raiz que remete a um passado histórico concreto e real, sem o tronco da esperança que nos lança para o futuro, e sem os frutos do amor, sempre presente, seremos uma árvore seca, que seria melhor cortar e utilizar como lenha ou deixar simplesmente que seque. Peçamos ao Espírito do Senhor, com a colaboração materna de Maria, que vivifique de tal modo os nossos Institutos, que cada um deles constitua um bosque que ofereça sombra fresca, purifique o ar poluído que nosso mundo respira e produza com abundância frutos de salvação para todos os nossos irmãos e irmãs aos quais o Senhor nos envia!
5 Cfr. JÜRGEN MOLTMANN, La Catastrofe atomica: e Dio, dov’è?, Urbino, Il Nuovo Leopardi, 1987, p. 11.
6 Ibidem, citando Günther Anders.
7 S. TERESA DI GESÙ BAMBINO, Opere Complete, Roma, Libreria Editrice Vaticana – Edizioni OCD, 1997,
p. 91.
8 Ibidem, 221-223.
9 KARL RAHNER, Siervos de Cristo, Barcelona, Ed. Herder, 1970, p. 206.
10 THOMAS J. J. ALTIZER, Il Vangelo dell’Ateismo Cristiano, Roma, Ubaldini Ed., 1969.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Uma espiritualidade para o nosso tempo. Experiência que brota da Palavra de Deus e da contemplação da realidade


 Mercedes Lopes, mjc[1]
 
De maneira inédita e até mesmo contrária a certas previsões, o final do século XX e a primeira década do século XXI caracterizam-se pelo interesse generalizado em relação ao espiritual, a tudo o que transcende a realidade desafiadora e complexa deste mundo globalizado. Rápidas e profundas transformações modificam a compreensão do mundo e a capacidade humana de situar-se nele. Nesse cenário surge uma variedade enorme de movimentos de renovação espiritual, ligados a diferentes religiões, e aparecem também buscas independentes de encontrar orientação, sentido e força para viver tal momento de transição e desafios históricos. Por isso tanto interesse, hoje, pelo tema espiritualidade.
Sendo muitas e variadas as tendências dessa busca, cada grupo tem uma idéia diferente quando se refere à palavra espiritualidade. Muitos a entendem simplesmente como algo relativo ao sobrenatural ou mesmo como um bom fluido que resgata as energias perdidas e provoca a cura de doenças. Para algumas pessoas, a espiritualidade é uma ajuda para agüentar os sofrimentos da vida e a buscam pelos mais diversos caminhos, como o do pentecostalismo, do esoterismo, de práticas próprias das religiões orientais, como, por exemplo, a meditação transcendental etc. Na realidade, todos procuram espaços que garantam uma boa qualidade de vida nesta tumultuada e complexa realidade do mundo de hoje.
Com tanta demanda, a espiritualidade torna-se mais um artigo de consumo que se encontra na TV, na internet, nos shoppings e nos grandes acontecimentos mundiais, comprometidos com o mercado global. Nesse contexto estão em moda os shows celebrativos, seja em rituais de grupos religiosos, seja na realização de grandes eventos esportivos. Mas esses belos shows litúrgicos, tão bem preparados, não compreendem as dimensões mais profundas do ser humano na sua busca de encontro pessoal com Deus, nem expressam o grande mistério de sofrimento e de felicidade que as pessoas experimentam em seu dia-a-dia.
Nas igrejas, há uma liturgia do espetáculo, que parece fugir da realidade. Uma liturgia mais preocupada com a aparência, com a estética, com o efeito que os sons, o colorido e os gestos causam nos "espectadores". A liturgia show não celebra a vida cotidiana, em que as pessoas de fé experimentam a presença de Deus chamando-as à vida e pedindo que se coloquem a serviço do seu projeto de vida em plenitude para todas as pessoas (Jo 10,10). Ao contrário, ela expressa uma religiosidade que busca, pede, implora e celebra acontecimentos extraordinários, porque não pode suportar o mistério de um Deus que se esconde e se revela no ordinário da vida.
Também a Vida Religiosa Consagrada torna-se, às vezes, consumista dessa espiritualidade show e nela gasta o tempo que poderia ser usado para partilhar as experiências de Deus, vivenciadas no cotidiano das comunidades religiosas ou para colocar-se em projetos criativos e articulados a fim de cuidar e defender a vida dos pobres e do meio ambiente. Dessa maneira, a VRC vai-se distanciando da fonte de onde brota a água viva, do seu sentido e da sua raiz, que é o seguimento de Jesus Cristo. E a espiritualidade do seguimento que sustenta a VRC na busca de ser fiel à sua vocação mítico-profética, colocando-se radicalmente a serviço da vida, a exemplo de Jesus de Nazaré.
Tal entrega audaciosa somente será possível se for sustentada por uma íntima relação com o Jesus dos evangelhos, isto é, pela mística do discipulado. Na intimidade diária com Jesus, o Cristo, a VRC cultiva uma espiritualidade encarnada e profética, centrada na Palavra de Deus e na mística do discipulado, aberta à diversidade cultural, religiosa e de gênero.[2] E disso que vou tentar falar neste artigo.
 Espiritualidade que brota da contemplação da realidade
Toda contemplação começa na dureza do real, da vida cotidiana, onde está permanentemente conosco o Cristo vivo: "Eis que estarei com vocês todos os dias até a consumação dos séculos" (cf. Mt 28,20). A convicção desta presença fiel de Cristo na dureza do real impede a VRC de cair na tentação de fugir das situações desafiadoras, em que somente se escuta o silêncio de Deus. Para cultivar uma espiritualidade encarnada e profética, é preciso aceitar o escândalo da cruz como manifestação do amor sem medida de Deus! (ICor 2,1-5).
Mas a imagem de um crucificado sangrando, impotente diante dos que o torturam, humilhado e abandonado, é um desafio grande demais para o imaginário simbólico da cultura do mercado global. Quem consegue contemplar a glória de Deus na carne de um crucificado? (Jo 12,28). Que glória pode ser contemplada em um corpo todo ferido, repugnante ao nosso olhar? Há tantos corpos semelhantes, importados das periferias do mundo pelos meios de comunicação! São corpos que passam rapidamente pelas telas da TV, apenas por toleráveis segundos, para seguir sem alívio em direção à morte![3]
No entanto, uma espiritualidade encarnada é expressão da fé, da certeza de que dos corpos crucificados emana um brilho, uma luz muito mais instigante e duradoura do que a das imagens maquiadas que aparecem na TV e nas revistas, sorridentes por terem conquistado o êxito que a nossa cultura tanto valoriza.
Para ter essa fé, essa certeza, é preciso fazer experiência de proximidade com esses corpos feridos. Vendo-os de longe, pelas imagens da TV, nas telas dos computadores ou pelas vidraças dos carros, sentimos apenas medo ou repugnância. Não chegamos a fazer a experiência que muda completamente o nosso olhar, como aconteceu com a comunidade dos discípulos de Isaías: "Assim como se pasmaram diante dele, tão desfigurado estava o seu aspecto humano, assim estremecerão muitas nações. Reis fecharão a boca, pois verão aquilo que não lhes foi contado e compreenderão aquilo que não escutaram" (Is 52,14-15).
A dor dos pobres e inocentes, a repressão contra as pessoas que reclamam justiça e direitos iguais para todos podem ser a denúncia mais forte, a luz que de repente ajuda a ver e a analisar uma realidade maquiada pelo poder do capital que controla a mídia. Porque, quando entramos em contato direto com a realidade, inseridos no meio de pessoas bem concretas, cujos corpos podemos tocar, cuja dor penetra nossas entranhas, o véu que cobre e esconde a realidade cai! Ver de perto a dor dos corpos indefesos e escutar seus clamores nos desperta da apatia e nos dá um sobressalto!
Tomamos um susto ao lembrar que seguimos Jesus de Nazaré, que abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida comum de um ser humano, ele foi humilde e obedeceu a Deus até a morte — morte de cruz (cf. Fl 2,7-8).3 Tendo-se entregado radicalmente, o Pai o levanta da morte, o ressuscita, para que esteja vivo entre aqueles e aquelas que o seguem, pelos séculos dos séculos (cf. Mt 28,20). A ressurreição é o carimbo e a assinatura de Deus no projeto de Jesus.
 Espiritualidade encarnada e profética
Uma espiritualidade encarnada é conseqüência desse encontro com o real, com os corpos crucificados pelo sistema excludente do mercado global. Essa aproximação comprometida com a vida dos pobres possibilita uma compreensão mais profunda do mistério da encarnação, superando a velha e ideológica visão de mistério como algo que não podemos penetrar. Essa compreensão do mistério levou-nos a admirar e a contemplar a encarnação de Jesus sem perceber todo o seu significado para a vida humana. Na encarnação de Jesus, Deus assume a humanidade, a corporeidade, a condição histórica de cada pessoa neste mundo.
No mistério da encarnação, Deus se identifica com a humanidade que sofre e também com a humanidade que se alegra, experimentando, em Jesus de Nazaré, o cansaço, a fome, a sede, a dor da perda de um amigo, a angústia diante da morte. No mistério da ressurreição de Jesus, Deus manifesta que todo corpo é templo do Espírito (cf. 1Cor 3,16; 6,19; Ef 2,22), proclamando mais uma vez sua máxima dignidade. E o espírito de Jesus Cristo ressuscitado que resgata e recria os corpos feridos e os confirma para sempre como sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26-27).
Assumir que Jesus veio em carne é profecia atual, porque não nos permite ver indiferentemente os corpos que são transformados no lixo humano do sistema de mercado. Desde o começo do cristianismo houve a tentação de negar que Jesus Cristo veio em carne. A comunidade joanina enfrentou-se com pessoas que negavam a encarnação de Jesus, chamando-as de "anticristos" (cf. 2Jo,7). Para a comunidade joanina, o critério para a verificação da fé cristã está no assumir que "o filho de Deus veio em carne" (1Jo 4,2). Nessa verificação a comunidade joanina relaciona cristologia e ética (1Jo 4,20). Uma ética fundamentada no amor e no reconhecimento da presença de Deus em todas as pessoas.
É o Espírito de Deus que possibilita a verdadeira confissão de fé em Jesus, que veio em carne (cf. 1Jo 4,2-3), que tomou corpo e que nos possibilitou ser verdadeiramente imagens de Deus (cf. Gn 1,26-27). Negar que Jesus veio em carne é negar que Deus é capaz de fazer além, infinitamente além de tudo o que nós podemos pedir ou conceber (cf. Ef 3,20). É negar que para Deus nada é impossível (cf. Lc 1,34). Afirmar a encarnação de Deus é afirmar que outro mundo é possível, que é possível outra VRC mais ágil no anúncio do Reino, mais liberta e libertadora.
Uma espiritualidade encarnada somente é possível quando se vive no âmago da história, ainda que esta seja contraditória e desafiadora, como no tempo de Jesus. E dentro dessas contradições que se vive o amor autêntico, solidário, generoso: "A pessoa autenticamente espiritual não é aquela que tem experiências espirituais extraordinárias, mas sim aquela que vive profundamente o amor ao próximo e o respeito ao próximo. Ser cristão é viver o amor pelo outro, no diálogo e no respeito, aberto ao futuro (= utopia)".[4]
Sim, existe atualmente um grande interesse pela espiritualidade e por tudo o que contribui para encontrar sentido e orientação para viver neste mundo marcado pela complexidade. São muitas e variadas as tendências, interpretações e vivências das experiências espirituais; porém, a verificação dessas experiências se dá na prática da pessoa que assume sua corporeidade como expressão e revelação do mistério que a habita. Consciente de ser presença de Deus na história, vive a solidariedade carinhosa e cuidadora dos corpos empobrecidos, excluídos, feridos e maltratados, como o fez Jesus de Nazaré, até chegar a dizer como o apóstolo Paulo: "Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim" (Gl-2,20).
 Espiritualidade centrada na Palavra de Deus
Hoje, a Palavra de Deus interpela a VRC para que avance em direção ao desconhecido, onde nos esperam multidões de pessoas em situação de risco. Avance em direção às novas formas de solidariedade, de testemunho, de fé comprometida, alegre e audaciosa! "Diga a esta geração, avance!"(Ex 14,15).[5] Diante dessa interpelação, muitas vezes a VRC sente-se sem criatividade ou sem forças para dar passos novos em direção a um futuro sem rumo, sem caminhos traçados, sem garantias de sucesso. A única garantia é a da Palavra que a convoca, jogando luz sobre a exigente situação do momento atual.
Se procurarmos conhecer a história das congregações religiosas, chegaremos à conclusão de que a maioria delas nasceu de uma profunda experiência de Deus, mediatizada pela Palavra e pelos clamores dos pobres, em momentos críticos da história. A inspiração primeira que levou homens e mulheres a reunir companheiros e companheiras para concretizar um carisma, um dom de Deus para a Igreja ao serviço do Reino, tem sua fonte na Palavra de Deus e na compaixão pelo sofrimento dos pobres. Essas experiências bonitas, variadas, diferentes em cada época e relacionadas às experiências de Deus e às histórias pessoais, são tão fortes que mudaram os rumos da vida de muitas pessoas, gerando novos e confiáveis sinais da presença de Deus no mundo.
Desde a segunda metade do século XX houve um resgate da lectio divina pelos pobres das comunidades cristãs da América Latina.[6] Quando eles lêem a Bíblia em comunidade, levam para dentro dela seus problemas e suas perguntas, que brotam do chão da vida cotidiana. Essas questões vitais expressam o desejo de encontrar saídas para as situações difíceis, fortalecendo a união e a esperança na caminhada. Ao fazer a leitura bíblica ligada à vida, o olhar da comunidade de fé vai-se transformando e as descobertas levam à partilha e ao compromisso de vida. Nesse processo a comunidade vai tecendo uma espiritualidade centrada na Palavra e geradora de solidariedade articulada, alegre e criativa.
Por meio dessa maneira de os pobres lerem a Bíblia, Deus nos devolve o caminho para chegar à fonte que gerou nossos institutos religiosos, que foi a experiência de Deus através da sua Palavra e do clamor dos pobres. Para retornar a essa fonte colocamo-nos à escuta da Palavra também na vida, na natureza, na história (DV, n. 3). E "a leitura orante da Palavra de Deus escrita na Bíblia que nos ajuda a descobrir a Palavra de Deus na vida".[7] Assim, a leitura da Palavra vai transformando nosso olhar e nosso coração, para que sejamos de fato discípulos e missionários de Jesus Cristo em meio às profundas transformações e aos grandes desafios que envolvem a humanidade hoje.[8]
Interpelada pela Palavra de Deus, que ocupa um lugar central em sua vida, a VRC assume o discipulado no serviço à vida, fortalecendo a inserção nos meios populares e gerando novos espaços de solidariedade e cidadania.[9]
 Espiritualidade que testemunha as novas relações do Reino
A espiritualidade cristã é a expressão de uma experiência de encontro com Deus a partir do mistério mais autêntico e profundo do próprio ser, abrindo-se confiantemente à alteridade,[10] para estabelecer uma relação de acolhida e de paz com o diferente. Embora toda espiritualidade cristã tenha como base um encontro pessoal e íntimo com Jesus de Nazaré, através dos evangelhos e presente nos pobres, na comunidade, nos acontecimentos da vida cotidiana, ela tem também algo característico de cada pessoa e por isso podemos falar de espiritualidade franciscana, teresiana, beneditina etc.
Cada uma dessas pessoas, Francisco, Teresa, Bento etc., teve uma relação única, pessoal e profunda com Jesus. Fizeram uma experiência que marcou suas vidas e lhes deu uma dimensão peculiar dentro da espiritualidade cristã. Encontros gratuitos com Deus presente nas mais variadas e desafiadoras situações cotidianas são geradores de espiritualidade. Nesse sentido a espiritualidade é reveladora de relações profundas que marcaram a pessoa e que lhe deram uma dimensão nova e ampla da vida, de Deus e dos outros.
Se nos abrirmos aos outros e nos deixarmos confrontar pelas diferenças que existem nas comunidades religiosas, na sociedade e na Igreja, descobriremos riquezas que jamais poderíamos imaginar. Experiência que se torna impossível quando se fica na defensiva, nas comparações, nas mágoas e decepções ou na relação competitiva. Quando alguém se abre a uma relação pessoal com Deus, vai descobrindo o mistério profundo do seu próprio ser (Sl 139) e se maravilha com a experiência de ser amado incondicionalmente por Deus. E dessa relação que nasce a espiritualidade cristã. Ela tem uma base comum, que é Jesus Cristo (1Cor 3,11), embora haja sempre características muito pessoais, segundo a história de vida e a identificação com o carisma congregacional.
A entrega cotidiana e apaixonada na defesa e cuidado da vida dos pobres e do meio ambiente é expressão da autenticidade no seguimento de Jesus, vivendo o amor sem medida (Jo 13,1). A abertura ao diferente, superando os preconceitos de gênero e culturais, criando espaços para o diálogo ecumênico e inter-religioso, na acolhida terna de toda pessoa, demonstra a qualidade da nossa entrega. Essa entrega é o termômetro da nossa espiritualidade!
Questões para ajudara leitura individual ou o debate em comunidade
1. Quais são as experiências de Deus que estão nas raízes da nossa espiritualidade?
2. Que aspectos da realidade tocam nossas entranhas, levando-nos a uma identificação com a entrega total e amorosa de Jesus?
3. Como a centralidade da Palavra de Deus transparece em nossa espiritualidade?
4. Como essa espiritualidade encarnada e profética está nos ajudando a superar bloqueios e dificuldades nas relações cotidianas?
5. Que projetos concretos de serviço ao Reino estão sendo inspirados e sustentados pela mística do discipulado que vivenciamos?
Fonte: CRB, CONVERGÊNCIA, Ano XLIII – nº. 417-Dezembro 2008, 751-759.

[1] Irmã Mercedes Lopes é teóloga e biblista, mestra e doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Endereço da autora: Rua Fátima Goulart, 72, apto. 103, Centro, CEP 26235-120, Mesquita-RJ. Tel.: (21) 2696-0352. E-mail: lopesmercedes@ hotmail.com.
[2] Quadro Programático da CRB 2007-2010, prioridade 2.
[3] BUELTA, Benjamin Gonzales. "Ver o perecer". Mística de ojos abiertos. Santander: Sal Terrae, 2006. pp. 22-23.
[4] KLOPPENBURG, Alex José. Disponível em: www.cebsuai.orgbr/content/view/302/36/ Acesso em: 12 ago. 2008.
[5] Quadro programático da CRB 2007-2010, Horizonte.
[6] Segundo a equipe que elaborou os roteiros do projeto "Tua Palavra é Vida", a lectio divina reapareceu entre nós, sem rótulo e sem nome, na leitura que os pobres fazem da Bíblia. Foram eles que nos despertaram para a leitura orante da Bíblia. Veja mais em: A Bíblia na formação. "Tua Palavra é Vida". Rio de Janeiro-São Paulo: Publicações CRB-Loyola, 2000. pp. 18-19.
[7] A Bíblia na Formação. "Tua Palavra é Vida", cit., p. 266.
[8] Quadro programático da CRB 2007-2010, Horizonte.
[9] Prioridade n. 1.
[10] Compreendemos a alteridade como uma capacidade de encontro entre o ser  humano e a divindade, gerando um processo de humanização e divinização que atinge a totalidade do ser humano, levando-o a estabelecer uma relação de iguais com todas as pessoas, na acolhida das diferenças