sábado, 10 de novembro de 2012

Vida Consagrada

Para onde o Espírito nos impulsiona?

Ninguém sabe com certeza. Aqui e ali surgem pistas que precisam ainda ser testadas e experimentadas. Certamente, a vida dos religiosos e religiosas está em profundíssima transformação. Dizemos que o Espírito aponta direções e horizontes. Não é fácil ver claro.  Há neblina. Há aquilo que sabemos e aquilo que virá como resposta às nossas súplicas  prementes.
1. Nós, religiosos, como todos os discípulos do Senhor, respondemos ao seu apelo, ao seu chamamento, à sua convocação para sermos seus íntimos colaboradores, para fazermos uma profunda experiência de entrega irrestrita a Deus e aos irmãos. Foi do Cristo ressuscitado que chegou até o fundo do coração o apelo para seu seguimento. Tentamos ler os sinais desse chamamento em nossa biografia pessoal. Temos a certeza da vocação. No meio de todas as tempestades temos plena consciência desse chamamento. A religiosa idosa que cuida do refeitório das irmãs, que limpa o corredor, que salmodia na capela, que aceita os achaques da velhice, que reza toda casta, toda pobre, toda obediente é uma bênção para a Igreja e o mundo. Na vida consagrada, o que conta são as pessoas e não, em primeiro lugar, obras e prédios.
2. Vivemos, de verdade, um tempo incômodo de perplexidade e  de insegurança. Por vezes, fazemos mesmo a experiência de uma pobreza total, de uma incapacidade de encontrar soluções para dar passos firmes na direção do amanhã.  Há momentos em que não conseguimos enxergar luminosidade no horizonte. Algumas de nossas congregações  estão para fechar as portas. Muitas delas têm um alto número de religiosas e religiosos acamados (às dezenas) e que precisam de atenções e cuidados dispendiosíssimos dia e noite. Esses doentes e idosos não podem apenas ser entregues a casas bem equipadas com aparelhos e enfermeiros. Eles são o grande patrimônio das Ordens e Congregações. Quem os sucederá?  Todos os que refletem sobre as transformações da vida consagrada pedem que não alimentemos uma tal angústia.
3. Estamos convencidos de que quem mostra o caminho é o Espírito. Ele quer que aceitemos entrar no seu movimento. Não se trata de fazer por fazer, mas sentir, de fato, para onde o Espírito sopra. “A recuperação da dimensão espiritual da Igreja consiste não somente em promover cursos de espiritualidade, mas levar a sério o papel criador do Espírito em cada um dos batizados. Quando pessoas mais críticas e criativas são ignoradas ou caladas na vida real da Igreja, comete-se um pecado contra o Espírito Santo. Se os cristãos quiserem dar resposta à sede de espiritualidade que o mundo tem teremos, antes de tudo, que escutar o Espírito que fala pelas pessoas” (Alberto de Mingo, C.SS.R, in Vida Nueva  2414).  Muitos rapazes e moças, homens e mulheres maduros com muito carisma, não são aproveitados nas metas que o Espírito sugere.
4. Não é possível imaginar qualquer renovação da vida cristã e consagrada sem que religiosos e cristãos façam constantemente profundas e repetidas experiências do Senhor. Não se trata de um mero recitar de salmos mais ou menos mecânica e rotineiramente, mas de habitar o  próprio interior, deixar-se impregnar do som da voz de Deus e acolhê-lo num coração modesto e humilde. Não há outra saída. Os consagrados precisam rever sua vida de intimidade com o Senhor. O ponto mais importante da vida de uma casa de consagrados é a vivência e a celebração comunitária da Eucaristia. Não se pode fazer economia desse aspecto. Todos os esquemas de redesenhamento supõem homens e mulheres profundamente de Deus.  Nossas paróquias ou santuários serão espaços de formação de leigos com profundíssima vida de oração.
5. Os  membros da vida consagrada vivem um tempo de extrema pobreza: poucas vocações, religiosos idosos e doentes,  tentativas nem sempre bem-sucedidas de redimensionar e redesenhar o Instituto. Pode ser que  nessa extrema pobreza os religiosos estejam abrindo caminhos novos: poucos religiosos, casas simples, vida fraterna e missionária, vontade de descobrir o novo.  Nada de desânimo:  “ ‘Levantai os olhos e olhai os campos já brancos, prontos para a colheita’ (Jo 4,35). Somos convidados a levantar nossos olhos, a ter o mesmo olhar de Jesus e ver o mundo bom que já tem seus frutos. ‘O essencial é invisível aos olhos’, diz a raposa ao Pequeno Príncipe.  A “contração” na vida consagrada – e  na Igreja – nos obriga a concentrar no essencial, cuidar de não cair vítima da urgência ou da síndrome de salvador ou viver num  mal-estar que não acaba. O tesouro precioso das Congregações neste momento, ao meu ver,  não são as obras mas as pessoas.  As pessoas, os consagrados haverão de estar no coração da vida, com as pessoas que encontram. Não se pode viver a vida consagrada à parte, com o próprio carisma e atividades próprias. Será fundamental estar no mundo, disposto a perder a ideia de desfraldar a bandeira do próprio carisma. Não ocupamos uma posição assimétrica com o mundo: vivemos da reciprocidade. É o estilo da encarnação, é a identidade de nossa vida”  (Rosina Barbari,  Un futuro aperto. Vita ‘consecrata’, santità, mondo, La Rivista del Clero Italiano  12/2011, p. 869).
6. Sempre de novo será preciso beber das águas límpidas dos fundadores. Para viver em comunidade, numa dinâmica de fundação, de refundação, é preciso aprender a caminhar juntos  assumindo o risco de um amor verdadeiro, onde cada um é acolhido pelo que é, não pelo que pode fazer ou se pode tirar dele, não pelo que ele quereria ser. No caminho comunitário, o povo do êxodo, é capaz de atravessar desertos de nossos tempos para se dirigir com fé e confiança à terra nova da promessa. Falando de comunidade não se pode esquecer da solidão e do silêncio. Longe de ser fuga ou isolamento, a solidão  faz com que cada um aceite ser diferente dos outros. “Na solidão perdemos a ilusão de ser tudo para os outros e ali se mede melhor quanto é necessário despojar-se da necessidade de consumir ou de ser consumido por eles. Caminho do desejo, do amor, a solidão é uma prova pela qual devem passar, em diferentes níveis, os amigos, os esposos e os que vivem em comunidades” ( cf. Une  manière de vivre. Les religieux aujourd’hui, Philippe Lécrivain, Lessius, Bruxelles, 2009, p. 168). Quando se fala em comunidade, não se pode esquecer o silêncio:  “Na vida comum, convém aprender a acolher o sempre estranho que é o outro e não reduzi-lo ao que já é conhecido. Para tanto, é preciso aprender a se calar e aceitar serem questionadas algumas certezas”.
7. Nossas casas serão simples, nosso vestir modesto, nosso coração aberto, nossa criatividade sem limites, nosso interior sempre sedento de verdadeiros encontros, nossa vida como uma vela acesa que se consome.  Transpiraremos serenidade e alegria  e não haveremos de destilar pessimismo.
8. Nossa missão no mundo?  Estar presente onde pudermos. Com modéstia, mas com transparência. Marie-Étienne Bély, em instigante texto publicado em Esprit et  Vie, oct. 2001,  disserta sobre o mundo a ser evangelizado. Diante da lógica  da engrenagem da força: “Todos sabemos, ao menos depois de Gandhi, que a prática da não-violência nas relações humanas supõe inteligência e imaginação, infinita paciência e respeito pelo outro. Este conjunto de  atitudes engendra  uma ética do olhar, por exemplo, não fechar os olhos diante das múltiplas  facetas do ser humano: horrores para serem denunciados, realçar o que há de bom, sem exagerar com sofreguidão tanto no positivo quanto no negativo;  uma ética da palavra (falar  do outro em sua ausência como se ele estivesse presente) o que faz secar a fonte da maledicência;  uma ética do ouvido (capacidade de tudo ouvir com discrição), em outras palavras, domínio sobre si mesmo que saiba integrar as forças vivas da pessoa do conjunto e nunca desesperar”.
9. Diante da lógica do  dinheiro  responder pela gratuidade e a contemplação:  “Num mundo  marcado pelo aleatório, o arbitrário, o vago, a multiplicidade de escolhas, a tarefa que cabe aos cristãos é a educação para o querer, orientar para finalidades que não sejam apenas de hoje, imediatas, aprender a vencer-se a si mesmo, sem competição nem rivalidade”. Uma vida que não se erga sobre oscilações das  bolsas”. Os franciscanos são homens e mulheres da desapropriação, do êxtase diante do Deus rico que nos cumula de bens, pessoas que aprendem assim a dar a vida pelos outros.
10. Dois grandes campos de atividade se desenham diante do horizonte dos franciscanos, religiosos ou leigos:  um sério e profundo trabalho de educação do ser  humano todo desconjuntado, desarrumado, perdido, asfixiado, dopado, tonto por tantos ruídos e um empenho seríssimo de  formação do cristão. Não se trata apenas de uma catequese meio up to date. Nossas casas serão centros de formação de cristã, de catequese em todos os níveis e em todos os sentidos.  Esse trabalho de educação à fé haverá de ser feito pela  família. Pelos corredores de nossos locais de atividade, de nossas paróquias haverão de circular casais e famílias.
11. Estar à escuta do mundo contemporâneo  significa detectar as grandes interrogações dos homem moderno. Qual o sentido da vida? Como viver profundamente o amor? Como ajudar as novas gerações a se aprumarem na vida? Como alimentar no fundo do coração a saudade de Deus? Como reagir a um mundo de aparência, de salve-se-quem-puder, de individualismo?  Os religiosos darão o testemunho de viverem na paz e na alegria em suas fraternidades. Alguém escreveu que a amizade fundada na verdade, a vida fraterna, constituem verdadeiros laboratórios de educação para a autonomia e para a liberdade pessoal.  As pessoas não podem continuar a existir despersonalizadas, como se fossem joguetes de uma sociedade imoral que não respeita seu mistério. Os religiosos e os cristãos serão profetas,  fermento e testemunhas para o serviço da palavra e para fazer com que as pessoas reencontrem o caminho do coração. Tudo com muita simplicidade, sem alarido, sem confusão, sempre numa postura de pobreza e de despojamento.
Afinal de contas, para onde o Espírito está nos impulsionando?
Fonte: www.franciscanos.org.br

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Nascemos porque fomos convidados


      O primeiro chamado que recebemos de Deus é o chamado à vida. Conforme o profeta Jeremias: “Antes de formar você no ventre de sua mãe, eu o conheci; antes que você fosse dado à luz, eu o consagrei, para fazer de você profeta das nações (cf. Jr 1,5s).”
Nosso existir é uma constante batalha: a todo instante somos desafiados a dar respostas. Vocação é, antes de tudo, um chamado. Pelo que vimos e experimentamos, em todos os momentos da vida estamos sendo chamados: desde o início de nossa existência até seu final; da vida à morte; da infância à eternidade. Não há como fugir da dimensão vocacional: ela está em nós como a beleza da rosa que não se pode desprender da sua forma material de flor. Somos, por natureza, vocacionados, ou seja, chamados, predestinados a alguma coisa.
No terceiro domingo do mês de agosto, a Igreja celebra o Dia do Religioso e da Religiosa, o dia da Vida Consagrada. Esta é um dom de Deus para a Igreja e para a Humanidade. Consagrado quer dizer escolhido por Deus para pertencê-Lo totalmente e para ser instrumento de sua particular presença de Amor no mundo. É uma vocação que se realiza por obra do Espírito Santo, no seguimento radical de Cristo casto, pobre e obediente.
A vida religiosa consagrada é um dom do Espírito Santo, sendo, no mundo atual, um sinal de profecia. São homens e mulheres que, livre e espontaneamente, decidiram consagrar-se a Deus para estar no mundo. E é através da sua consagração religiosa que realizam a missão de anunciar a Boa Nova de Jesus Cristo, vivendo em fraternidade dentro do carisma específico. Portanto, se falamos que Deus é Amor, então somente Ele basta em nossa vida.
Toda vocação é um chamado que vem de Deus e, ao dar a resposta, todo vocacionado torna-se impregnado de responsabilidade para com Deus, pois foi Ele quem o chamou e o consagrou: “Antes mesmo de te modelar no ventre materno, eu te conheci; antes que saísse do seio, eu te consagrei. Eu te constituí profeta para as nações (cf: Jr 1,4-5)”.
Somos conclamados a proclamar os altos feitos do Senhor, segundo São Pedro (cf: 1Pd 2,9). Desse modo, compreendemo-nos “co-herdeiros de Cristo” e, portanto, consagrados, participantes por excelência não apenas dos seus sofrimentos, mas também da sua glória (cf: Rm 8,16 -17). Tal consagração não é senão pela verdade, que é a Palavra de Deus.
O vocacionado consagra-se a Deus e Ele joga o consagrado no mundo: Eles não pertencem ao mundo, como eu não pertenço ao mundo. Consagra-os com a verdade: a verdade é a tua palavra. Assim como tu me enviaste ao mundo, eu também os envio ao mundo. Em favor deles eu me consagro a fim de que também eles sejam consagrados com a verdade (cf: Jo 17,16 -18).” Estando no mundo sem ser do mundo, mas enviados a ele para, assim como Jesus, fazer brilhar a glória dos grandes feitos de Deus.
Há homens e mulheres na vida religiosa. Os homens podem ser clérigos ou irmãos. Assim, pode-se muito bem ser um consagrado sem ser um ministro ordenado. Há de se considerar que o ideal é voltar às origens, quando a vida religiosa nasceu leiga, tornando-se clérigo só em um segundo momento, no início da vida religiosa em que o profetismo tenha prevalência. E nisso, o religioso irmão e a religiosa podem ser profetas na Igreja hierarquizada.
O Concílio Vaticano II, no Decreto sobre a renovação da vida religiosa Perfectae caritatis, número 10, afirma: “A vida religiosa leiga, tanto masculina como feminina, constitui por si mesma um estado pleno de profissão dos conselhos evangélicos, confirmando tais religiosos em sua vocação e exortando-os a adaptarem as suas vidas às exigências atuais devido à importância maior que possuem para o ministério pastoral da Igreja.” Portanto, o Concílio reconhece a importância desta vocação no meio social e no mundo. A Lumen Gentium (43,44) segue o mesmo exemplo e defende: “pela constituição hierárquica da Igreja, esse estado de vida não é intermediário entre a condição dos clérigos e dos leigos e sim um dom peculiar na vida da Igreja e faz parte, indubitavelmente, de sua vida e de sua santidade”.
Como imitadores e seguidores de Cristo, exercem o sacerdócio comum pelo múnus apostólico adquirido no sacramento do Batismo e confirmado nos demais sacramentos que conferem a graça de serem sacerdotes, pastores e reis, fazendo parte do sacerdócio real de Cristo. São, portanto, habilitados a colaborar de perto com a Igreja particular, cooperando com o bispo diocesano no seu ministério pastoral, pois vivem a consagração “mais íntima”, radicados no Batismo e dedicados totalmente a Deus pela vivência dos conselhos evangélicos.
Podem, ainda, na vivência de tal consagração, “colaborar com a gestação de uma nova geração de cristãos discípulos e missionários de Jesus Cristo e de uma sociedade onde se respeite a justiça e a dignidade da pessoa humana, fazendo transparecer o rosto materno da Igreja”, de acordo com o pedido no Documento de Aparecida do Episcopado Latino Americano e do Caribe.
O religioso e a religiosa são chamados por Deus e reconhecidos pela Igreja. Portanto, é uma vocação especial plantada no coração do mundo. Vocação esta que precisa ser regada e cultivada com o carinho e o respeito devidos.
Que o Senhor conceda um coração bem aberto a seu Espírito, presente e atuante na história! Que suas propostas, Senhor, nos encontrem acordados e preparados para seguir seus caminhos, por mais desconcertantes que nos possam parecer. Seguir seus caminhos intermanete como frei, irmão consagrado.
Nossa vocação: responder aos chamados! Da vida à morte, do hoje ao amanhã... Somos animados e desafiados a responder, a dizer sim ou não às demandas das fases de nossa existência.
frei mauro alves da rosa, ofmcap.


sábado, 18 de agosto de 2012

Mensagem aos Consagrados e às Consagradas do Brasil

Amados, amadas de Deus, Irmãos e Irmãs de Vida Consagrada, Tenho Sede!
dom Pedro Brito Guimarães- presidente da Comissão para os Ministérios Ordenados e a Vida Consagrada
Nas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora na Igreja no Brasil 2011 – 2015 encontramos o seguinte texto: “para uma Igreja comunidade de comunidades, é imprescindível o empenho por uma efetiva participação de todos nos destinos da comunidade, pela diversidade de carismas, serviços e ministérios. Para isso, faz-se necessário promover: (…) o carisma da vida consagrada, em suas dimensões apostólica e contemplativa, presente em fronteiras missionárias; inserida junto aos pobres; atuante no mundo da educação, da saúde, da ação social; orante em mosteiros e carmelos, comprometida a evangelizar por sua vida e missão” (DGAE 104,b).
Quando aprovamos este texto, lembramo-nos muito de vocês. E hoje, nós que fazemos a Comissão para os Ministérios Ordenados e a Vida Consagrada – PV-SAV, OSIB, CNP, CND, CRB, CNIS e SBE -, queremos unir-nos a vocês na comemoração do dia do consagrado e da consagrada, marcado na grade do mês vocacional, no dia 19 de agosto.
É nossa missão apoiar, promover, valorizar, cultivar, cuidar e animar os carismas e mistérios na Igreja, sobretudo os das pessoas de vida consagrada. A vida consagrada é comunhão, vista à luz da Santíssima Trindade. Comunhão em Deus é abertura e pericorese: o Pai está todo para o Filho; o Pai e o Filho estão todo para o Espírito Santo; e o Espírito, Senhor que dá a vida, procede do Pai e do Filho, e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: ele que falou pelos profetas. Esta abertura de uma pessoa divina a outra é o espelho da comunhão de vocês na vida consagrada. A confraternidade na vida consagrada é o espaço humano, habitado pela Santíssima Trindade. A vida consagrada é, portanto, um dos rastos concretos que a Trindade deixa na história para que os seres humanos possam sentir o encanto e a saudade da beleza divina.
Vocês, amados, amadas de Deus, fazem parte da melhor e da mais perfeita forma de rede de comunidades; e também pelos carismas, apostólicos e contemplativos, vocês vivem a plenitude e a absoluta pertença a Deus, na ação e na oração. Portanto, caros e caras, permitam-nos escolher entre tantos, com o perigo que comporta qualquer escolha, os dez sinais que, a nosso parecer, melhor se adaptam ao estilo de vida que vocês levam e que mais chamam a nossa atenção, nesta homenagem que fazemos a vocês:
01. Ficamos felizes por vocês nos ensinarem a viver a leveza das nossas pesadas e letárgicas instituições eclesiais. Ensinem-nos a aliviar os pesados fardos das nossas Igrejas.
02. Agradecemos a vocês apostarem no valor da profecia e na força do profetismo, hoje bastante escasseados, até a entrega da vida no martírio. Que o testemunho de vocês ajude a nossa Igreja a redescobrir o amor, a solidariedade, o serviço, a partilha e o dom da vida.
03. Somos gratos a vocês por viverem o dom da virgindade consagrada, através de corações indivisos, em meio a uma sociedade erotizada. Que vocês consigam quebrar as barreiras do erotismo, do egoísmo e do individualismo, tão presentes na sociedade atual, assumindo um novo e diferenciado modo de vida, pela prática da castidade para servir, mais de perto, ao Cristo Senhor, e testemunhar que somos cidadãos e cidadãs do infinito.
04. Bendizemos a Deus por nos revelar em vocês o rosto materno de Deus e da Igreja, no cuidado dos mais pequeninos, dos restos, dos sobrantes e dos últimos. Que todos vocês, consagrados e consagradas de vida apostólica, monástica ou contemplativa, e membros dos Institutos Seculares, assumem o compromisso de dedicar a vida ao serviço do Reino de Deus, servindo aos irmãos na prática da misericórdia e da solidariedade, na luta pela justiça e na vivência do amor fraterno.
05. Louvamos pelos votos públicos de pobreza, obediência e castidade, e pela visibilidade da vivência radical destes conselhos evangélicos. Que a vida e as suas ações pastorais façam transparecer, com um sorriso no canto da boca, o rosto materno de Deus, especialmente para com os pobres, excluídos e marginalizados da sociedade.
06. Agradecemos a vocês a mística de paixão pelo Reino, em tempos complexos. Vivemos num mundo agitado e superficial. E que, neste contexto, vocês, consagrados e consagradas, cultivem a oração interior através da leitura orante da Palavra de Deus.
07. Somos profundamente gratos a vocês pela compaixão para com os pobres e pelo alegre testemunho de que somente Deus basta para dar sentido à vida e preenchê-la de alegria e de significado. É esta paixão pelo Reino que permite a vocês ouvirem a voz de Deus, deixando-O falar em todos os recantos da existência.
08. Obrigado por vocês apostarem no discipulado missionário, indo além do mundo que nos rodeia, para além das fronteiras da fé. A missionariedade está escrita no coração mesmo de toda a forma de vida consagrada. Vocês de vida consagrada são missionárias por excelência. E, por isto, devem ajudar-nos a crescer na consciência e na cooperação missionárias. E que este estilo de vida deixe transparecer a presença e a pertença ao Deus vivo, mesmo que, muitas vezes, de formas silenciosas.
09. Louvamos e agradecemos os projetos comuns, parcerias, partilhas e socialização dos dons e dos bens, em vista da missão e da evangelização. Que vocês ajudem a Igreja a manter aceso o fogo e o ardor missionários. E que vocês cultivem, cada vez mais, o amor a Jesus, apaixonados por Ele, fortalecidos pelos sagrados alimentos da eucaristia e do Evangelho da vida.
10. Enfim, profundamente agradecidos por vocês serem o que são, independentemente do que vocês fazem. Agradecemos igualmente a vocês o dom da vida doada e consagrada, com os olhos fixosem Jesus Cristo. Quevocês nos ajudem a crer que nossa pátria é o céu e que, portanto, ninguém viva, aqui na terra, como se aqui tivesse morada permanente.
Que o Divino Espírito Santo, doador dos dons e carismas e mantenedor dos serviços e ministérios, continue soprando novos e fortes ventos para despertar e suscitar novas, boas e santas vocações à vida consagrada, para o bem da Igreja e da humanidade.
Deus abençoe a vocês todos e todas, derramando chuvas de vida e de graça e fecundando os jardins de suas existências.

“Amo a todos vocês no Cristo Jesus” (1Cor 16,24).
Com minha bênção,
Dom Pedro Brito Guimarães,
Arcebispo de Palmas e
Presidente da Comissão para os Ministérios Ordenados e a Vida Consagrada

terça-feira, 24 de julho de 2012

Monges: Vidas Vazias e Beleza


Numa palestra feita recentemente ao Congresso de Abades da Ordem Beneditina, da qual este texto foi tirado, o Mestre Geral dos dominicanos, Timothy Radcliffe, explora o vazio da vida monástica e sugere que é precisamente essa aparente falta de propósito em termos profanos, o que permite a essas comunidades tornarem-se «tronos da glória de Deus».
As abadias beneditinas têm sido como oásis na peregrinação da minha vida, lugares onde me tem sido possível descansar e refrescar-me antes de continuar o caminho. Em toda a parte por onde tenho passado, tenho encontrado multidões de pessoas em visita a mosteiros. Porque é que lá se encontram? Alguns, sem dúvida, são turistas que vêm passar uma tarde talvez à espera de ver um monge, como se fosse um macaco num zôo. Se calhar estão à espera de encontrar avisos a dizer: «É proibido dar comida aos monges». Outros vêm por causa da beleza dos edifícios ou da liturgia. Muitos, esperando algum encontro com Deus. Fala-se muito de «secularização» mas vivemos num tempo marcado por uma profunda busca religiosa. Há uma fome de transcendente. As pessoas procuram-no nas religiões Orientais, nas seitas da «new age», no exótico e no esotérico. Muitas vezes suspeita-se da Igreja e de toda a religião institucional, com exceção, talvez, para o caso dos mosteiros.
Porque é que as pessoas são tão atraídas por mosteiros? A minha idéia é que os vossos mosteiros revelam Deus não por causa do que fazeis ou dizeis, mas talvez porque a vida monástica tem no seu centro um espaço, um vazio, no qual Deus se pode mostrar. O meu propósito é sugerir que a Regra de São Bento oferece uma espécie de centro vazio para as vossas vidas, no qual Deus pode viver e ser apercebido.

1. O Trono de Deus

A glória de Deus mostra-se sempre num espaço vazio. Quando os Israelitas saíram do deserto, Deus veio com eles sentado no espaço entre as asas dos querubins, por cima do trono de misericórdia. O trono da glória era esse vazio. Era só um espaço pequeno, a largura de um palmo. Deus não precisa de muito espaço para mostrar a sua glória. No Aventino, a menos de duzentos metros daqui, está a Basílica de Sta. Sabina, em cuja porta se encontra a primeira representação da cruz de que se tem conhecimento. Aqui vemos um trono de glória que é também um vazio, uma ausência, como quando um homem morre a chamar pelo Deus que parece tê-lo abandonado. O mais autêntico trono de glória é um túmulo vazio, onde não está o corpo.
A minha esperança é que os mosteiros beneditinos continuem a ser lugares nos quais a glória de Deus brilha, tronos para o mistério. E isto, pelo que vós não sois, pelo que vós não fazeis.

2. Sem Objetivo Concreto

Vou propor-vos três aspectos da vida monástica que criam este vazio e abrem um espaço para Deus: em primeiro lugar, as vossas vidas não têm qualquer objetiva concreto; em segundo lugar, não levam a parte nenhuma, e, finalmente, porque são vidas de humildade. Cada um destes aspectos da vida monástica abre-nos um espaço para Deus. E quero sugerir que em cada caso é a celebração da liturgia que dá sentido a este vazio. É o canto do Ofício várias vezes ao dia que mostra que este vazio é preenchido com a glória de Deus.
O fato mais óbvio na vida dos monges, é que não fazem nada de especial. Cultivais a terra, mas não sois lavradores. Ensinais, mas não sois professores. Podeis mesmo dirigir hospitais, ou centros de missão, mas não sois em primeiro lugar nem médicos nem missionários. Sois monges que seguem a Regra de S. Bento. Não fazeis nada de especial. Os monges são geralmente pessoas muito ativas, mas a ação não é o objetivo e o propósito das vossas vidas. O Cardeal Hume uma vez escreveu que «não nos vemos como tendo qualquer missão particular ou função na Igreja. Não pretendemos mudar o curso da história. Acontece que, do ponto de vista humano, estamos aqui quase por acaso. E é apenas isso que, felizmente, continuamos a fazer»1. É esta ausência de finalidade explícita que revela Deus como a finalidade secreta, oculta das vossas vidas. Deus é revelado como o centro invisível das nossas vidas quando não tentamos dar qualquer outra justificação para o que somos. O essencial da vida cristã é, justamente, estar em Deus. Jesus diz aos discípulos: «Permanecei no meu amor» (Jo. 15:10). Os monges são chamados a permanecer no seu amor.

3. Competição

O nosso mundo é um mercado. Todos a chamar a atenção, e a tentar convencer os outros de que o que vendem é necessário para se ter uma vida boa. Somos informados a toda a hora do que precisamos para sermos felizes: um micro-ondas, um computador, umas férias nas Caraíbas, o último sabonete. E é tentador para a religião vir também para o mercado apregoar com os outros concorrentes: «Precisais da religião para serdes felizes, bem sucedidos e até mesmo para serdes ricos!» Uma das razões para a explosão das seitas na América Latina é que elas prometem riqueza. E é assim que o Cristianismo lá está a apregoar que é importante para a vossa vida. Yoga esta semana, aromaterapia na próxima. Conseguiremos nós persuadi-los a darem uma oportunidade ao Cristianismo?
Precisamos de cristãos no meio da massa, a gritar com os demais em plena azáfama do mercado, tentando chamar a atenção. Mas os mosteiros encarnam uma verdade mais profunda. Fundamentalmente, prestamos culto a Deus não por ele ser relevante para nós, mas simplesmente porque ele é. A voz da sarça ardente proclamou: “Eu sou aquele que sou”. O que importa não é que Deus seja relevante para nós, mas que em Deus encontramos a revelação de toda a relevância, a estrela polar das nossas vidas. Penso que este era o segredo da autoridade única do Cardeal Hume. Ele não tentou pôr à venda a religião e mostrar que o Catolicismo é o ingrediente secreto da vida de sucesso. Ele era simplesmente um monge que rezava. Lá no fundo as pessoas sabem que um Deus que tem necessidade de demonstrar que é útil não é digno de ser adorado. Um Deus que tem que ter relevância não é Deus. A vida do monge testemunha a irrelevância de Deus, pois tudo o mais só é relevante em relação a Ele. As vidas dos monges testemunham isso mesmo, pela ausência de qualquer atividade particular, exceto permanecer com Deus. No centro das vossas vidas existe um vazio, como o espaço entre as asas dos querubins. Lá, podemos ter um vislumbre da glória de Deus.

4. A Beleza do Louvor

Como é que as pessoas que afluem aos mosteiros, vêem os monges, e ficam para as Vésperas, podem descobrir que este vazio é uma revelação de Deus? Suspeito que é pelo canto.
Quando ainda miúdo, na Abadia de Downside, devo confessar que não era muito religioso. Fumava atrás das salas de aula, e escapava-me de noite para os pubs. Se alguma coisa me conservou ligado à fé, foi a beleza que eu ali encontrei: a beleza do Ofício cantado, a luminosidade das horas da madrugada na Abadia, o esplendor do silêncio. Foi a beleza que não me deixou partir.
Não se podem discutir as intimações da beleza ou ignorá-la. E esta é, provavelmente, a forma mais clamorosa da autoridade de Deus, neste tempo em que a arte se tornou uma forma de religião. Podem ser poucas as pessoas que vão à Igreja ao Domingo, mas há milhões que vão a concertos, galerias de arte e museus. Na beleza podemos vislumbrar a glória da sabedoria de Deus que dançava quando criou o mundo, «mais bela do que o sol» (Sab. 7). De acordo com a Septuaginta, quando Deus criou o mundo viu que era kala, belo. A bondade convoca-nos sob a forma de beleza. Quando as pessoas ouvem a beleza do canto, então podem, na verdade, adivinhar porque é que os monges ali estão e qual é o centro secreto das suas vidas, o louvor da glória. Era típico de D. Basil Hume, que quando falava dos mais profundos desejos do seu coração, falava em termos de beleza: «que admirável experiência poder conhecer qual seria, no meio das coisas mais belas, a mais bela de todas elas. Seria a mais alta de todas as experiências de alegria, e total realização. À mais bela de todas as coisas eu chamo Deus»2.
E se a beleza é verdadeiramente a revelação do bom e do verdadeiro como acreditava S. Tomás de Aquino, então, talvez faça parte da vocação da Igreja ser o lugar da revelação da verdadeira beleza. Muita da música moderna, mesmo na Igreja, é tão trivial que se torna numa paródia de beleza. É kitsch, e tem sido descrita como «pornografia da insignificância» 3. Talvez isto aconteça porque caímos na armadilha de ver a beleza em termos utilitários, útil como entretenimento, em vez de descobrirmos que o que é verdadeiramente belo revela o bem.
Acredito que o caminho da vida monástica é em si mesmo muito belo. Ao ler a Regra fiquei fascinado ao descobrir que logo no princípio ela diz que, «é chamada Regra porque regula as vidas dos que lhe obedecem». A regula regula. Mas talvez regula sugira não tanto controlo como medida, ritmo, vidas que têm um contorno e uma forma. É assim, talvez, como na disciplina da música. Sto. Agostinho pensava que viver virtuosamente era viver musicalmente, estar em harmonia. Amar o próximo era, dizia ele, «viver em atmosfera musical» (4), «A graça é graciosa e a vida graciosa é bela.»
Assim, mais uma vez, é o canto da liturgia que revela o sentido das nossas vidas. São Tomás disse que a beleza na música está essencialmente ligada à temperantia. Nunca nada deveria ser em excesso. A música deve guardar o compasso certo, nem demasiado depressa, nem demasiado lento, guardando a medida certa. E Tomás pensava que a vida em temperança nos mantinha jovens e belos. Mas o que a Regra parece oferecer é especialmente uma vida com medida, sem nada em excesso, embora eu não saiba se os monges ficam mais jovens e mais belos do que qualquer outra pessoa!
Ao ouvir cantar os monges, entrevemos a música que é a vossa vida, seguindo o ritmo e o compasso da melodia da Regra de São Bento. A glória de Deus está sentada no trono dos louvores de Israel!

5. Sem Objetivo

As vidas dos monges dão que pensar aos de fora não apenas porque eles não fazem nada de particular, mas também porque as suas vidas não buscam nenhum objetivo. Como todos os membros de ordens religiosas, o que dá forma e sentido à vossa vida não é a busca de promoção. Somos simplesmente irmãos e irmãs, frades, monges e monjas. Não podemos nunca aspirar a ser mais. Um soldado ou acadêmico de sucesso sobe na vida através de promoções. A sua vida tem valor porque ele é promovido a professor ou general. Mas não é assim conosco. A única escada de promoção na Regra de São Bento é a da humildade. Tenho a certeza de que há monges, como frades, que por vezes alimentam secretos desejos de promoção, e sonham com a glória de serem celeiros ou mesmo abades! Tenho a certeza de que há muito monge a olhar-se ao espelho, a imaginar-se com uma cruz peitoral ou mesmo com uma mitra, e a esboçar uma benção dada à sucapa .... Mas todos sabemos que o contorno das nossas vidas é realmente dado não pela promoção mas pela caminhada em direção ao Reino. A Regra é dada, diz São Bento, para vos apressar em direção à nossa morada celeste. Uma pessoa torna-se monge ou frade, e de nada mais precisa para sempre.

6. Ritmo Litúrgico

Temos que viver o ritmo do ano litúrgico como o mais profundo ritmo das nossas vidas. A liturgia monástica serve para nos lembrar que vamos para o Reino. É fácil dizer que o religioso vive para a vinda do Reino, mas na realidade muitas vezes não o fazemos. O ano litúrgico esboça o caminho real para a liberdade, mas nem sempre o tomamos. De acordo com São Tomás, a formação, especialmente a formação moral, é sempre formação na liberdade. Mas a entrada na liberdade é lenta e dolorosa, e há de incluir erros, escolhas erradas, e pecado. Deus faz-nos passar do Egito para a liberdade do deserto, mas ficamos com medo, tornamo-nos escravos de bezerros de ouro, ou tentamos escapar de novo para o Egito. O verdadeiro drama do dia a dia da vida do monge é este: não a questão de ser ou não promovido subindo de cargo, mas a iniciação na liberdade, com freqüentes recaídas na imaturidade e na escravidão. Como é que podemos entender a nossa lenta ascensão na liberdade de Deus, e as freqüentes recaídas na escravidão? Mais uma vez, talvez seja na música que possamos encontrar a chave.

7. Música e Drama

Santo Agostinho escreveu que a história da humanidade é como uma composição musical onde há lugar para todas as dissonâncias e desarmonias da falha humana, mas que finalmente conduz a uma resolução harmônica, em que cada coisa tem o seu lugar. No seu maravilhoso tratado De Musica, escreveu que «a dissonância pode ser redimida sem ser suprimida»5
A história da redenção é como uma grande sinfonia que abarca todos os nossos erros, as nossas notas falsas, e na qual a beleza finalmente triunfa. A vitória não é que Deus apague as nossas notas falsas, ou finja que nunca aconteceram. Ele encontra um lugar para elas na composição musical que as redime. Isto acontece principalmente na Eucaristia. Nas palavras de Catherine Pickstock, “a mais alta música no mundo decaído, a música redentora... não é outra senão o sacrifício repetido do próprio Cristo que é a música da para-sempre-repetida.

8. Eucaristia

A Eucaristia é a repetição do clímax no drama da nossa libertação. Cristo dá-nos livremente o seu corpo, mas os discípulos rejeitam-no, negam-no, fogem dele, pretendem que o não conhecem. É esta a música da nossa relação com Deus – nela encontramos as mais profundas desarmonias. Mas na Eucaristia elas são assumidas, abraçadas, e transfiguradas em beleza num gesto de amor e dom. Nesta música eucarística somos inteiramente restaurados e encontramos harmonia. É uma solução harmônica que não ignora a nossa rejeição do amor e da liberdade, pretendendo que ela nunca aconteceu, mas transformando-a em passos no caminho. Nas nossas celebrações ousamos lembrar os apóstolos nas suas fraquezas.
Assim, o significado da vida do monge é que ele vai em direção do Reino. A nossa história é a história da humanidade na sua caminhada para o Reino. É isto que tornamos vivo no ciclo anual do ano litúrgico, da Criação ao Reino. Mas o drama diário da vida do monge é mais complexo, com as nossas lutas e falhas para nos tornarmos livres.

9. A humildade

Finalmente, chegamos ao que é mais fundamental na vida monástica, o que é mais belo e difícil de descrever: a humildade. É também o menos aparente às pessoas que vêm visitar os vossos mosteiros, e no entanto, é a base de tudo. É, diz o Cardeal Hume, “uma coisa muito bela de se ver, mas a tentativa de nos tornarmos humildes é na verdade penosa”7. É a humildade que cria um espaço vazio para Deus no qual Ele pode habitar e a sua glória ser visitada. É, em última análise, a humildade que faz das nossas comunidades o trono de Deus. É difícil para nós hoje encontrar palavras para falar de humildade. A nossa sociedade quase parece convidar-nos a cultivar o oposto - uma afirmatividade, uma auto-confiança impertinente.
Como vamos construir comunidades que sejam sinais vivos da beleza da humildade? Como podemos mostrar os profundos atrativos da humildade num mundo onde reina a agressividade? Só vós podeis dar a resposta. Bento foi mestre em humildade, e eu não tenho a certeza de que ela tenha sido sempre a virtude mais óbvia de todos os Dominicanos! Mas gostaria de partilhar um pensamento breve. Quando pensamos em humildade, talvez a vejamos como uma coisa intensamente pessoal e privada: eu olhando para mim e vendo-me sem valor, a examinar a minha própria interioridade, contemplando as minhas desprezíveis qualidades. Isto é, no mínimo, uma perspectiva deprimente.
Talvez Bento nos convide a fazer qualquer coisa de muito mais libertador, que consiste em construir comunidade em que somos livres de rivalidade, competição e luta pelo poder - uma nova espécie de comunidade estruturada na mútua deferência, na obediência mútua. É uma comunidade em que ninguém ocupa o centro, mas o centro é o espaço vago, o vazio que é preenchido com a glória de Deus. Isto implica um profundo desafio à imagem moderna do eu como eu solitário, absorvido em si mesmo, o centro do mundo, o eixo à volta do qual tudo gira. No coração da sua identidade está a consciência de si mesmo: «Penso, logo existo».

10. Abrir mão

A vida monástica convida-nos a largar o centro e a entrar na atração gravitacional da graça. Convida-nos a sermos descentrados. Mais uma vez, encontramos Deus revelado no vazio, numa ausência, e desta vez no próprio centro da comunidade, o espaço vago reservado a Deus. Temos que fazer um lar para a Palavra vir e habitar entre nós, um espaço para Deus estar. Enquanto estivermos em competição pelo centro, não haverá espaço para Deus. Portanto, a humildade não é eu desprezar-me a mim próprio e pensar que sou horrível. É escavar o coração da comunidade para criar nele um espaço onde a Palavra possa armar a sua tenda.
Uma vez mais, eu penso que é na liturgia que podemos encontrar manifestada esta beleza. É ao vermos os monges a cantar o louvor de Deus, que então podemos vislumbrar a liberdade e a beleza da humildade.
Sumário

11. A beleza do vazio

O cume da humildade é descobrir não só que não se é o centro do mundo, mas que nem mesmo se é o centro de si mesmo. O vazio não existe só no centro da comunidade onde Deus habita, mas existe também no centro do meu ser. Sou uma criatura a quem Deus dá existência a cada momento. Deus dá a Adão o seu sopro e sustenta-o no ser. No coração do meu ser não estou só. Deus está lá dando-me a existência a cada momento com o seu sopro. No centro de mim não está o eu solitário, o ego Cartesiano, mas um espaço que é preenchido por Deus. Talvez seja esta a suprema vocação do monge; mostrar a beleza desse vazio, ser, individual e comunitariamente, templo para que nele habite a glória de Deus. No coração da vida monástica está a humildade. Não a humildade acabrunhante, depressiva, dos que têm ódio a si mesmos, mas a humildade dos que se reconhecem criaturas, cuja existência é um dom. E por isso é coisa certíssima que no centro da sua vida haja canto, porque é neste canto que se manifesta o ato criador de Deus. Cantamos essa Palavra de Deus, pela qual tudo é feito. Aqui sente-se uma beleza que é mais do que apenas o agradável. É a beleza que celebra o irromper da criação.
O que esperamos perceber nos mosteiros é mais do que podemos dizer. A glória de Deus escapa às nossas palavras. O mistério destrói as nossas pequenas ideologias. Como São Tomás de Aquino, vemos que tudo o que possamos dizer é apenas palha. Quer isso dizer que só resta ficar calados? Não, porque os mosteiros não são só lugares de silêncio mas de canto. Temos que encontrar maneiras de cantar, no limite da linguagem, na fronteira do sentido. É isto que Santo Agostinho chama o canto de júbilo, e é o canto deste ano jubilar.
Perguntas o que é cantar com júbilo? É estar consciente de que as palavras não chegam para exprimir o que vamos cantando nos nossos corações. Nas colheitas, nas vindimas, em qualquer momento que os homens tenham de trabalhar no duro, começam com canções cujas palavras exprimem a sua alegria. Mas quando a alegria transborda e as palavras não chegam, deixam mesmo essa coerência e entregam-se inteiramente ao puro prazer do canto. Que júbilo é este, este cântico de exultação? É a melodia que diz que os nossos corações trasbordam com sentimentos que as palavras não podem exprimir. E a quem, de direito, pertence este júbilo? Seguramente a Deus que é inefável.

12. Bibliografia

1. In Praise of Benedict. Ampleforth, 1996, p. 23.
2. To be a Pilgrim. Slough, 1984, p. 39.
3. George Steiner – Real Presences, London, 1989, p. 145.
4. De musica. VI. Xiv 46.
5. Catherine Pickstock – Music: Soul, and city and cosmos after Augustine, in Radical Orthodoxy, ed. John Millbank et al., London, 1999, p. 276, nota de rodapé 131.
6. Ibid., p.265.
7. To be a Pilgrim, p. 67.
8. Sobre o Salmo 32; Sermão 1.8.
Fonte:http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/monaquismo

sábado, 21 de julho de 2012

As Origens do Monaquismo Cristão

Armand Veilleux, OCSO
(Uma versão ligeiramente modificada deste estudo
foi publicada na revista Louvain, nº 97, de abril de 1999.Traduziu: Cecilia Fridman, Rio Negro, PR, Brasil, para o Mosteiro Trapista Nossa Senhora do Novo Mundo, em 5/7/1999.
A questão das origens do monaquismo cristão é uma das que voltam periodicamente. Sem dúvida porque se trata de uma questão à qual não se pode oferecer uma resposta totalmente satisfatória, e novas descobertas em muitas disciplinas correlatas a colocam sem cessar de um modo diferente.
Pelo final do século XIX, no momento em que se desenvolvia o estudo comparado das religiões, pesquisadores alemães liderados por H. Weingarten, pensaram que a origem do monaquismo cristão podia se explicar por uma evolução a partir da velha religião egípcia. O monge cristão continuaria a tradição dos reclusos (katochoi) do templo de Serápis. Foi relativamente fácil aos historiadores católicos demonstrar o caráter nitidamente cristão do monaquismo egípcio primitivo e de fazer ver que nenhuma dependência podia ser demonstrada em relação aos cultos pagãos. Enquanto por longo tempo os estudos neste tema se concentravam sobre a história das práticas ascéticas, o estudo de Peter Nagel sobre as motivações destas práticas em 1966, marcou uma reviravolta.
Estas discussões ocasionaram um renovado interesse pelas fontes literárias do monaquismo primitivo. Monges e monjas reaprenderam a buscar seu alimento espiritual naquilo que se começou a denominar de "Fontes monásticas", isto é, as obras do monaquismo antigo, em particular os "Apoftegmas", as Vidas de Antão e de Pacômio, sem esquecer seguramente Cassiano, que havia servido de traço de união entre o Oriente e o Ocidente.
Na onda de renovação dos estudos bíblicos e patrísticos do após-guerra, muitas boas edições críticas sobre o monaquismo antigo foram publicadas, obras estas pouco conhecidas ou de que não se dispunha ainda de edições antigas de acordo com os ditames da ciência contemporânea. Estas edições suscitaram por sua vez a aplicação da crítica textual, histórica e literária a estes escritos que só tinham até este momento servido como alimento para a "leitura espiritual". A questão das origens do monaquismo voltou, pois, a ser colocada de outro modo.
Com efeito, o mito do Egito como "berço do monaquismo", de onde teria em seguida se expandido para os outros países do Oriente inicialmente, e depois para o Ocidente, não podia mais ser mantido. Tornava-se evidente que o monaquismo havia nascido um pouco em toda parte ao mesmo tempo, sob formas muito variadas, e da vitalidade própria de cada Igreja local, no Oriente como no Ocidente. O esquema clássico de Antão e alguns outros eremitas fugindo para o deserto, antes que Pacômio inventasse o cenobitismo para remediar os inconvenientes do eremitismo, não correspondia à nenhuma realidade tal como revelada pelos documentos publicados. Descobria-se que desde suas primeiras manifestações, o monaquismo havia aparecido simultaneamente em todas as suas formas mais diversas: cenobitismo e eremitismo, monaquismo do deserto e monaquismo das cidades etc.
Um outro mito que não resistiu mais à crítica histórica (mesmo se continua a resistir) é aquele segundo o qual o monaquismo teria nascido após o Edito de Constantino, ou em todo caso, depois da era das perseguições. Por um lado, cristãos ferventes que desejavam o martírio que não estava mais ao seu alcance desejavam fazê-lo através da ascese, e por outro lado, teriam se retirado ao deserto em reação contra uma Igreja cujo fervor diminuía. Uma tal visão das coisas não tinha nenhum fundamento nem na realidade, nem nos documentos históricos que tendiam mais a mostrar a expansão do monaquismo como o fruto do fervor da Igreja que resultava do testemunho corajoso dos mártires.
Os estudos de Anton Vööbus, e sobretudo sua obra monumental sobre o ascetismo cristão na Pérsia, Mesopotâmia e Síria, mostravam, pelo ano 1960, à comunidade científica todo um mundo "monástico" até ali desconhecido salvo de alguns especialistas. Mas poder-se-ia falar de monaquismo a propósito dos Filhos e Filhas do pacto conhecidos por Efrém e Afraat em Nisibe e em Edessa e das numerosas formas de ascese muito radicais que tinham conhecido as Igrejas judeu-cristãs muito antes de Antão e Pacômio? Como fosse difícil ir contra a convenção bem estabelecida pelos historiadores que remontavam o "monaquismo propriamente dito" ao final do século terceiro, começou-se a falar de um "pré-monaquismo".
Dom J. Gribomont, num artigo extremamente importante, que era de fato uma recensão da obra de Vööbus, mostrou bem a estreita ligação entre este pré-monaquismo e o monaquismo. Ora, o que se tornava cada vez mais claro era que não havia descontinuidade entre os dois e que ninguém podia distingui-los nitidamente entre si.
Pela mesma época, ou mesmo um pouco antes, Daniélou e outros interessaram-se pelo judeu-cristianismo Parecia claro que foi nas Igrejas judeu-cristãs que se manifestou em todo seu rigor a corrente ascética ao longo dos três primeiros séculos cristãos. Sob este ponto de vista, não é por acaso que a tradição monástica tenha se desenvolvido de modo particular no Egito.
Em Alexandria, à época de Cristo, achava-se a diáspora judaica mais numerosa. Esta comunidade judaica era particularmente aberta a todas as tendências filosóficas e teológicas. Dois eminentes representantes deste judaísmo alexandrino, Filon e Plotino, tiveram uma influência marcante sobre toda a tradição mística cristã e, através de Orígenes e de Evágrio, sobre o monaquismo cristão, Uma comunidade cristã se formou em Alexandria imediatamente após o Pentecostes. Foi neste contexto muito rico que se desenvolveu a Escola de Alexandria com Panteno e Clemente, antes que Orígenes aí vivesse com seus discípulos um tipo de existência que só as convenções dos historiadores nos impedem de qualificar de "monástica". A obra recente de Samuel Rubenson mostrou que Antão e seus companheiros, longe de serem iletrados como se pensou por muito tempo, foram alimentados com o ensinamento filosófico e teológico da Igreja e Alexandria e de seus grandes doutores.
Os Essênios e os Terapeutas conhecidos pelo historiador Flávio Josefo e por Filon haviam vivido no Egito dois séculos antes de Antão e de Pacômio. Não é, pois, de se surpreender que depois da publicação dos documentos de Qumrân e, sobretudo da Regra da Comunidade, descrevendo um gênero de vida monástica muito semelhante nas suas expressões exteriores ao dos monges cristãos, a questão das origens do monaquismo foi de novo colocada. Não seria o monaquismo cristão a continuação do monaquismo essênio? Ou ainda, os primeiros monges cristãos não teriam sido monges essênios convertidos ao Cristianismo? A estas questões timidamente colocadas, respondeu-se que as motivações espirituais do monaquismo cristão eram radicalmente diferentes daquelas dos Essênios - o que era bastante claro - e que havia, de toda maneira, um hiato de alguns séculos entre o desaparecimento dos Essênios e o que se convencionou considerar como "os primórdios" do monaquismo cristão, pelo fim do século III no Egito. A resposta era verdadeira, mas nem tudo estava dito.
Nos mesmos anos em que foram descobertos os manuscritos do Mar Morto, foi também achada uma biblioteca copta em Nag Hammadi, no Alto Egito, sobre o lugar de um dos primeiros mosteiros pacomianos. Por diversas razões, particularmente políticas, a publicação destes documentos só começou vários anos mais tarde. A questão das relações entre estes manuscritos e o mosteiro de Pacômio permanece obscura, mas o fato é que os milhares de estudos que esta biblioteca copta, da qual a maioria das obras é gnóstica sob diversos títulos, nos trouxeram uma quantidade inestimável de novos conhecimentos sobre o contexto religioso do Egito durante os séculos que precederam o de Antão e de Pacômio e os primeiros monges dos Desertos da Nítria, Sceta e des Kellia.
Paralelamente, os estudos maniqueus faziam pela mesma época progressos enormes. Depois da descoberta de importantes manuscritos no Xinjiang na China, no início do século e depois no Fayoum em 1930, aquele do Codex Mani de Colônia em 1970 trouxe novas luzes sobre esta grande corrente religiosa, também muito viva no Egito na mesma época e que havia conhecido sua própria forma de vida comunitária que muitos não hesitam em qualificar como monástica. E, sobretudo, descobriu-se que Mani provinha de uma seita judeu-cristã.
Todos estes dados novos tinham levado os historiadores do monaquismo cristão a reconsiderar as teorias tradicionais sobre suas origens tomando em consideração este novo conhecimento do contexto religioso e cultural no qual havia se desenvolvido. Mas isto pouco impacto teve, exceto alguns breves, mas excelentes estudos de Antoine Guillaumont reunidos num pequeno volume intitulado Aux origines du monachisme chrétien. Infelizmente os historiadores do monaquismo e os especialistas das correntes religiosas acima citadas continuaram - e ainda continuam - em seu conjunto seus estudos em paralelo.
Ora, a questão das origens do monaquismo foi alvo de um novo viez. E isto ocorreu quando um especialista na Antiguidade tardia (Late Antiquity), o Professor Peter Brown, numa série de estudos, a começar pelo bem conhecido "The Rise and Function of the Holy Man in Late Antiquity" e, sobretudo naquele mais recente "The Body and Society. Men, Women and Sexual Renunciation in Early Christianity", nos habituou a considerar os fenômenos da ascese cristã num contexto muito mais amplo. O propósito de Peter Brown era muito mais extenso do que a questão das origens do monaquismo mas seu modo de situar os principais "atores" do monaquismo antigo, cada um no seu meio próprio, se mostrou muito rico e, quer se queira ou não, mudou nosso modo de ver a história monástica.
Vários autores recentes retomaram esta abordagem de Brown, aplicando-a mais precisamente à história do monaquismo, mas talvez com um esquema mais preciso. Em Virgins of God, Susanna Elm concentrou-se no ascetismo feminino, muitas vezes negligenciado nos estudos históricos do passado - e reuniu uma soma importante de dados novos que eram pouco conhecidos ou estavam esparsos em obras pouco acessíveis. O estudo de David Brakke sobre as relações entre a ascese egípcia e as políticas anti-arianas de Atanásio é também uma mina de ensinamentos reunidos com um grande rigor científico. O problema com estas obras, que estão entre as melhores entre muito as outras publicadas nos últimos anos é este: trata-se de estudos feitos com um enorme rigor - coisa que não é sempre comum, infelizmente, nos estudos sobre o monaquismo escritos por monges - mas que ignoram, mesmo explicitamente e deliberadamente por vezes (em virtude de um a priori pós-modernista) a dimensão propriamente espiritual da vida dos monges que eles estudam.
Na esteira dos estudos de Peter Brown e de todas as descobertas mencionadas mais acima, um novo interesse se manifestou depois de vinte anos pelo ascetismo na antiguidade. Tornou-se claro que o monaquismo cristão fez parte de um fenômeno muito mais geral que é o da ascese cristã, e esta não pode ser estudada sem se remeter ao contexto mais geral da ascese humana em geral e de suas inúmeras manifestações na sociedade durante os primeiros séculos da era cristã.
Um grupo de professores e de pesquisadores foi constituído nos Estados Unidos no início dos anos 1980, no seio da American Academy of Religion para estudar o fenômeno do ascetismo sob todos os aspectos. Foi organizada uma conferência internacional em New York em 1993 com o tema: "A dimensão ascética na vida religiosa e a cultura". Uma importante coleção de comunicações feitas a esta conferência foi publicada em 1995 com o título "Asceticism". Se alguns destes estudos mostravam uma compreensão do monaquismo cristão, outros analisavam o fenômeno ascético sem nenhuma referência às motivações que podiam ter aqueles e aquelas que o viveram no passado e o vivem no presente. Muitos estudos parecem reinterpretar a ascese- cristã ou não - à luz das teorias de Michel Foucault.
Columba Stewart - monge beneditino que rompeu com os métodos das disciplinas acadêmicas, e que acaba de publicar o que permanecerá sem dúvida por muito tempo a obra "definitiva" sobre Cassiano, sublinhava recentemente a urgência de uma abordagem multidisciplinar para suprir esta necessidade. Se, por um lado, estudos com um grande rigor metodológico pecam por ignorar a dimensão propriamente espiritual do monaquismo, muitos escritos sobre a espiritualidade monástica, por outro lado, mostram falta do rigor científico que se deve esperar para os nossos dias.
Não se trata talvez de aqui considerar, nem mesmo de esboçar um estudo tal que exigisse, inicialmente, a colaboração de vários especialistas de diversas áreas. Com risco de pecar um pouco por presunção, gostaria de delinear, sem me detalhar, a visão das origens do monaquismo cristão primitivo que me parecem já surgir dos estudos recentes.
Raimundo Panikkar falava do monaquismo como "arquétipo humano", assim sublinhando o fato de que existe uma dimensão monástica em todo ser humano e que aqueles que chamamos "monges" são os que organizam toda sua vida em torno desta dimensão profundamente humana. É isto que explica que a presença do monaquismo seja achada em quase todas as grandes tradições religiosas da humanidade cada vez que elas atingem um nível suficiente de espiritualização. De uma tradição a outra, de um século a outro, as manifestações exteriores deste ascetismo não são muito diferentes - a imaginação humana tem apesar de tudo seus limites. O que é radicalmente diferente de uma tradição espiritual a outra, é o objetivo buscado por esta ascese e a significação última que lhe é conferida.
Havia, à época de Cristo, em toda a região que agora conhecemos como Oriente Médio, e particularmente no judaísmo tardio, uma corrente ascética e mística. João Batista, com seu batismo, se situa nitidamente nesta corrente pelo seu estilo de vida e por sua pregação, independentemente de sua pertença ou não à seita dos essênios. Jesus se fez batizar por João e assim assumiu este movimento - um gesto do qual não se saberia sublinhar suficientemente a importância capital. E, é claro, assumindo-o, lhe deu um sentido radicalmente novo.
O próprio Jesus viveu com seus discípulos uma forma de vida comunitária que tinha muito mais em comum com esta tradição do que com as tradições dos rabinos de seu tempo, ou mesmo, com os profetas do Antigo Testamento. Eis porque a expressão "vita apostolica" na literatura monástica primitiva significará primeiramente toda esta vida dos Apóstolos com Jesus. Este último apresentava exigências extremamente radicais àqueles que desejavam segui-lo. Ou, quando, depois da morte de Jesus, certos cristãos desejaram adotar como modo permanente de vida os apelos radicais de Jesus ao celibato, à renúncia total, à pobreza, etc., tinham não só o exemplo de Jesus, mas achavam também nas formas contemporâneas de ascese, e também no arquétipo monástico no fundo de sua psique das estruturas humanas de expressão.
Um ascetismo cristão extremamente radical se desenvolveu muito depressa, em particular nas Igrejas judeu-cristãs, mais sensíveis ao radicalismo do Evangelho de Lucas e também ao papel transformador do batismo no Espírito do que as Igrejas sob a influência de Paulo. Foi a comunidade cristã toda que, em certos momentos, teve nestas Igrejas uma existência "monástica". Foi pouco a pouco que se desenhou no seio da comunidade eclesial a consciência de que nem todos eram chamados a seguir o Cristo pelo mesmo caminho e que se precisou uma via monástica distinta daquela do resto dos fiéis.
Quando se lêem os escritos dos monges cristãos do século IV, é muito claro que eles foram para o deserto ou se agrupavam nas fraternidades urbanas basilianas para seguir o Cristo e para se deixar transformar à imagem do Cristo sob a ação do Espírito Santo. Mas não se pode ignorar que segundo a própria lei da Encarnação, estavam condicionados na realização de seu "projeto" pelo contexto religioso e sócio-cultural no qual eles evoluíam.
As comunidades de Terapeutas e de Essênios no Egito de que faz menção Fílon, tinham muito em comum com as comunidades cristãs para que o historiador Sócrates, escrevendo alguns séculos mais tarde, se engane e as considere como grupamentos cristãos. Houve certamente contatos e influências mútuas entre estes grupos e as comunidades cristãs. O erro seria buscar entre uns e outros uma dependência ou continuidade histórica. Para ficarmos ainda no Egito, não se pode negar que o gnosticismo, este movimento que, ao lado de expressões aberrantes, exprimia e veiculava uma grande sede de experiência espiritual, estava muito espalhado no Egito pouco antes do grande desenvolvimento do monaquismo cristão ao final do século III. É evidente que o monaquismo cristão não deve sua origem ao gnosticismo!
Na verdade, a imagem que se desenha é a de um grande movimento espiritual que se desenvolveu no curso dos primeiros séculos de nossa era, ao mesmo tempo no cristianismo e fora dele. Este movimento comporta aspectos sublimes e também, aberrações. Há influências recíprocas entre as diversas correntes que o constituem, influências estas que correm em todas as direções.
Os grupamentos de origem não cristã sofreram talvez uma forte influência do cristianismo, e certos movimentos cristãos, por outro lado, sofreram influências estrangeiras a ponto de tornar-se heresias. O discernimento se faz pouco a pouco na Igreja através da vida e da experiência assim como pelo "sensus fidei" do povo cristão, até que a nova situação criada na Igreja constantiniana permita a realização de Sínodos onde os bispos terão a autoridade necessária para fazer a clara demarcação entre ortodoxia e heterodoxia.
Quando finalmente se desenha uma forma de vida cristã mais estruturada e reconhecida, utilizando os modos exteriores de expressões comuns aos ascetas de todos os tempos e de todas as tradições, mas exprimindo uma busca espiritual enraizada no Evangelho e vivida sob a direção do Espírito, começa-se a falar de "monaquismo". É o produto de uma longa evolução, e se está em presença do que chamaríamos hoje uma inculturação.
O monaquismo cristão é, assim, a primeira, e talvez a mais bem sucedida forma de inculturação. Isto quer dizer que é o encontro da mensagem evangélica sobre a vida perfeita com uma tradição ascética várias vezes secular que exprime as aspirações mais profundas da alma humana criada à imagem de Deus. Neste encontro esta tradição humana - enraizada num arquétipo humano - é enriquecida, e aí acha sua significação última; além disto, a mensagem cristã também é enriquecida de uma forma particular de expressão. Este encontro e este enriquecimento mútuo constituem a própria natureza da inculturação.
Ao longo de toda a história do monaquismo que se desenrolará depois, os momentos de grandes desenvolvimentos, de renovação ou de reforma foram aqueles onde, por ocasião de uma transformação cultural mais profunda, monges e monjas foram particularmente sensíveis às aspirações espirituais dos homens e mulheres de seu tempo e souberam dar, através de sua vida e na linha de sua tradição, respostas que foram valiosas não só para eles, mas também para seus contemporâneos.
A questão das origens do monaquismo cristão jamais nos deixará, pois o monaquismo só continua a existir porque é constantemente re-engendrado