quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Primeira Parte A FIDELIDADE, FONTE DE VIDA PLENA.


1. INTRODUÇÃO
A finalidade desta reflexão, mais que pretender dizer algo "novo", é estimular a reflexão comum. Por isso, procurarei manter-me o mais fiel possível ao título e ao significado do mesmo: oferecer uma moldura antropológica na qual possam situar-se propostas que ajudem a robustecer a fidelidade da vida consagrada daqueles que a ela são chamados: com particular atenção às gerações jovens.
Está fora de dúvida que a problemática fundamental toca a medula e o desenvolvimento da fé, partindo da experiência pessoal e comunitária do Deus de Jesus Cristo. Pressupondo isto, aqui devemos fazer uma "redução metodológica" de uma perspectiva específica: talvez possamos aproximar-nos o mais possível desta problemática, onde Natureza e Graça, sem confundir-se, encontram-se e interagem! Concretamente, o tema da fidelidade (não somente no sentido vocacional) de tal modo toca aspectos essenciais da pessoa, que necessariamente devemos renunciar a uma visão exaustiva, e devemos contentar-nos com situá-lo dentro desta moldura antropológica.
De um lado, esta problemática não é exclusiva da vida religiosa ou consagrada: basta pensar na situação dramática, e muitas vezes trágica, de tantos casamentos e famílias no mundo, mesmo de católicos! No campo da vida religiosa, atinge do mesmo modo Institutos de fundação recente, como Congregações mais antigas e até Ordens eremíticas e monásticas. Mais ainda: embora nos interesse sobretudo em relação às gerações jovens, não se refere somente a elas: a possibilidade de afastar-nos do seguimento radical de Jesus não desaparece até a morte. Como indica bem e perspicazmente D. Bonnhoeffer, a primeira palavra que o Senhor disse a Pedro é também a última: "Segue-me!"
Antes de abordar o conteúdo desta reflexão, convém explicitar formalmente a sua avaliação assiológica: trata-se de uma situação problemática, até memo perigosa, da qual é preciso defender-se, ou de ums que, além de ser inevitável, torna-se um desafio fascinante para a nossa fidelidade criativa a Deus, à Igreja e à humanidade? Penso que estamos convencidos de que, não obstante toda a seriedade que a situação exige, trata-se antes desta segunda alternativa: é a conseqüência de crer que o Espírito Santo continua presente e atuante em nossa Igreja e no mundo; mas também porque neste, como em muitos outros aspectos, se faz presente a "lei do pêndulo”: o nosso tempo sublinha dialeticamente elementos que, de forma explicável mas injusta, tinham sido descuidados em outras épocas. De nós depende, com a ajuda do mesmo Espírito, buscar o seu justo equilíbrio.
Falando simbolicamente: a cultura atual, sobretudo juvenil, deu uma volta total no caleidoscópio antropológico: contempla-se uma imagem totalmente nova, mas na qual podemos reconhecer os mesmos fatores estruturais que, na cultura precedente, refletiam a luz de um modo muito diferente, e por isto, também projetavam uma imagem diferente. Cremos, pois, que se trata, segundo a feliz expressão de G. K. Chesterton, de uma daquelas virtudes que se tornaram "loucas": esperamos que a doença não seja incurável!
Ainda no campo formal, achei mais conveniente escolher uma linha, entre outras, esperando que seja suficientemente relevante como para oferecer pistas de reflexão suficientes.A alternativa teria sido acenar a muitos elementos, necessariamente de modo superficial e impossível de aprofundar. Com outras palavras, recordando o provérbio: "quem tudo quer tudo perde", optei pela atitude oposta: abranger pouco, para tentar privilegiar a profundidade.
2. A HISTORICIDADE, HORIZONTE E CAMINHO DE REALIZAÇÃO HUMANA
Não há dúvida que, entre muitos outros fatores que configuram a cultura atual, a "descoberta" da historicidade humana constitui um dos mais relevantes. Não se trata de algo "novo" que não existia antes, ou que não era percebido universalmente. Trata-se antes daquelas coordenadas da existência humana que, justamente porque são onipresentes, correm o perigo, paradoxalmente, de tornar-se inatingíveis. Bastaria tomar qualquer página da Sagrada Escritura para reconhecer que a Palavra de Deus não se compreende absolutamente sem o pressuposto da historicidade humana. Sem ela, nem a revelação de Deus, nem a liberdade humana, nem o pecado ou a conversão existiriam.
Esta "presença implícita" da historicidade humana na Revelação acentua, entre outros fatores, o valor do "hoje" defronte do passado, e até do futuro: o que conta não é, digamo-lo com uma imagem, o peso das ações boas ou más realizadas e colocadas numa balança, e sim a situação atual. Recordemos, entre muitos outros, o célebre texto de Ezequiel: “Se o malvado se afasta de todos os pecados que cometeu e observa todos os meus preceitos e age com justiça e retidão, ele viverà, não morrerá. Nenhuma das culpas cometidas será recordada, mas viverá pela justiça que praticou " (Ez. 18, 21-22). Igualmente, o salmo 95 (94), sugerido no início da oração litúrgica cotidiana: "Se ouvirdes hoje a voz do Senhor, não endureçais o vosso coração" (v. 7-8); ou, mais dramaticamente, as comoventes palavras de Jesus na cruz ao ladrão arrependido: “Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43). Isto leva, sem dúvida, a uma avaliação mais qualitativa que "quantitativa" da existência humana, sem identificá-la, necessariamente, com a relação entre atitudes e atos no campo moral.
Por isso, falando de "descoberta", referimo-nos mais precisamente à sua tematização explícita, ligada à filosofia do século XX, (mesmo se as raízes já se encontram ao menos no século XIX), e, mais concretamente, ao existencialismo, constituindo uma das contribuições mais válidas e permanentes desta corrente filosófica e cultural.
Como o título deste parágrafo indica, "horizonte e caminho", não se quer indicar apenas que o ser humano vive na história (dentro do mundo e do universo inteiro, que, analogamente, podem chamar-se também, graças à mediação humana, "históricos"): isto é evidente; porém, mais intrinsecamente, pretende-se afirmar que o homem é um "ser histórico" justamente porque se realiza, ou se destrói, na história: tanto no nível pessoal, como comunitário, e até em escala mundial: principalmente numa época na qual as coordenadas geográficas cedem sempre mais a sua relevância às históricas, nesta "aldeia global" que está se tornando o nosso planeta.
Não se trata somente de uma importância quantitativa, um "mais"; porém, sobretudo de uma relevância qualitativa, já que a historicidade constitui um paradigma, erige-se no centro de uma Gestalt que inclui todos os elementos estruturais humanos de uma nova síntese (recordando a imagem do caleidoscópio).
Esta tematização da historicidade trouxe conseqüências em todos os campos da existência humana: basta recordar a revolução que provocou no conceito de educação e formação, entendida como "formação permanente", referida em primeiro lugar não à atualização específica ou eventual, como muitas vezes se entende, mas à convicção de que estamos em formação a vida toda, e que, portanto, não podemos considerar ninguém já "formado." (Analogamente, no campo moral, não se concebe um "homo viator" definitivamente perdido, nem já “confirmado na graça”).
Isto traz consigo uma mudança radical na maneira de expor a "formação inicial", e mesmo a etapa seguinte, inadequadamente chamada "formação permanente", como se fosse posterior à inicial. Embora levando em conta que a coisa mais importante não é mudar as palavras, e sim renovar seu conteúdo, convém ao menos mencionar o problema, que não é simples, da maneira de impostar esta "formação inicial" de modo que não seja, nem algo separado daquilo que virá depois, e menos ainda um antídoto contra, mas tampouco se limite a uma simples "primeira etapa" de um processo. No fundo, procura-se esclarecer o que significa dizer que "a formação (enquanto) permanente anima e orienta a formação inicial."
Neste horizonte de historicidade, integra-se plenamente uma daquelas "palavras-chave" que atualmente “têm direito de cidadania” até na vida consagrada: a busca da realização pessoal. Trata-se de um aspecto ineludível, mas também fonte de mal-endtendidos e mesmo de frustrações.
A respeito disto, gostaria de mencionar um texto esclarecedor do Pe. Friedrich Wulf SJ, que fala da fenomenologia teológica da vida religiosa:
"Na base da vida religiosa que deseja ter um fundamento teológico e espiritual, encontra-se um ser tocado pelo Mistério Divino do mundo e da vida (...) Este impacto se apresenta sobretudo de três modos: como ser tocado por Deus, por Jesus Cristo ou pela situação funesta do mundo. Trata-se de tipos ideais que apenas ressaltam diversos centros de gravidade, mas não existem jamais em forma pura. São estreitamente vinculados pelos seu próprio conteúdo, isto é, pela revelação cristã. Um ser tocado por Deus que não incluísse a mediação decisiva e o múnus redentor de Jesus, como a responsabilidade pela salvação do mundo e dos outros seres humanos, seria tão pouco cristão como um ser preocupado pela situação funesta do mundo que não tivesse como centro o Deus da nossa salvação, revelado em Jesus. Quem escolhesse como finalidade da sua vida, na medida em que se pode escolher por si mesmo, uma mística e contemplação que excluísse o mundo, seria tão culpado de retalhar essencialmente a mensagem salvífica cristã, como aquele que concebesse a sua vocação apostólica somente como um serviço funcional. Não obstante isto, deve haver prioridades, acentuações, porque senão tudo continuaria a ser teoria e não se adequaria à peculiaridade de cada um, à especificidade e vocação pessoal"[1].
Tudo isto é plenamente válido e esclarecedor; mas não é verdade que, junto com esta tripla motivação essencial e inseparável da vida religiosa e consagrada – o absoluto de Deus, a seqüela/imitação de Jesus Cristo e a salvação do mundo – ressalta-se, ao menos de modo implícito, a preocupação pela realização pessoal? Pode resultar fácil ignorar, e até querer excluir este aspecto, como expressão de egoísmo individualista e de um "psicologismo" malsão: todavia, se lemos com atenção o Evangelho, jamais encontraremos uma recusa, por parte de Jesus, desta pretensão: o que o Senhor faz é indicar o caminho autêntico para esta realização. Não é significativo que tenhamos esquecido demasiadas vezes que as bem-aventuranças não são normas morais ou religiosas, e sim promessas de felicidade?
Mais do que rejeitar ou anatematizar, é preciso discernir e esclarecer: somente é válida, na vida consagrada, quando se trata de uma realização em Cristo, unida indissoluvelmente aos três aspectos acima mencionados. Evidentemente, aqui exerce uma função decisiva a justa compreensão e atuação do conceito de idoneidade vocacional que permite integrar ambas as dimensões, a objetiva e a subjetiva.
Um dos aspectos mais fascinantes na contemplação dos grandes santos e santas, é considerá-los como pessoas realizadas e felizes. Se somos chamados a ser, como diz Vita Consecrata, uma "terapia espiritual" para o mundo de hoje, e queremos salientar o "profundo significado antropológico" dos conselhos evangélicos, não podemos ignorar esta dimensão: não basta viver a castidade, a pobreza e a obediência de maneira radical e plena: é necessário que, mesmo no nível humano, sejam atitudes irradiantes e atraentes, expressão de maturidade e plenitude (cfr. VC 87-91).
3. A LIBERDADE, O VALOR SUPREMO DA REALIZAÇÃO HUMANA
No interior do paradigma da historicidade, a liberdade adquire uma importância decisiva, justamente porque o ser humano se percebe, não como algo "programado de antemão", como um computador, mesmo o mais sofisticado, e sim como uma pessoa, como alguém que tem a vida nas próprias mãos, que pode dispor dela, que pode decidir o que deseja fazer com ela; aliás: o que quer ser, através dela.
Neste sentido, podemos recordar a frase, intencionalmente exagerada e provocadora de J.-P. Sartre: “A existência precede a essência.” Ninguém, nenhum ser humano ou divino pode decidir por mim aquilo que eu quero ser. Por detrás desta atitude podemos encontrar a expressão de um prometeísmo mais ou menos ateu, mas também um desafio que nos faça compreender que Deus não pode querer de nós, seus filhos, um amor e uma dedicação que não sejam plenamente livres.
Convém analisar mais a fundo a liberdade como dimensão essencial do ser humano. Sem dúvida, não podemos aceitar uma supremacia da liberdade que procure elevar-se acima de qualquer instância ou valor: mas tampouco pode-se rejeitá-la ou pregar contra ela. Lamentamos muitas vezes uma liberdade que degenera em libertinagem, etc.; mas qual é o perfil e a dinâmica desta atitude, para poder compreendê-la, enfrentá-la e dar-lhe resposta?
De forma semelhante à historicidade, esta superestima da liberdade não é só quantitativa (“o máximo"), mas também qualitativa, isto é núcleo de um paradigma em torno do qual giram todos os outros valores. Quando não se leva isto em consideração, torna-se impossível entender certas atitudes que parecem contraditórias.
Menciono um exemplo, não certamente casual. Diante do deplorável tema dos abusos e moléstias sexuais, sem dúvida injustificáveis, e da não menos deplorável manipulação dos mesmos, constatamos na sociedade e nos meios de comunicação uma "dupla medida" muitas vezes hipócrita: como é possível que esta sociedade, que procura punir a mínima falta neste particular, tolere ao mesmo tempo a sua exacerbação em forma de pornografia quase sem restrições? Vista do paradigma da sexualidade, esta atitude dupla resulta incompreensível; mas a partir de outro paradigma, o da liberdade, não só é compreensível, mas torna-se lógico: no fundo afirma que, quando se trata de adultos (= maiores de 18 anos), podem fazer o que quiserem, com absoluta liberdade, contanto que não prejudiquem a terceiros (aqui novamente: "na sua liberdade").
Obviamente, não procuro de modo algum justificar tal atitude; ao contrário, aqui se percebe, a meu ver, o cerne do verdadeiro problema. Como se indicava acima, não se trata só de uma avaliação quantitativa (= exagerada) da liberdade, mas é considerada, qualitativamente, como paradigma da realização humana. Diante disto, é preciso dizer: a liberdade não constitui um paradigma, não é o valor fundamental que permite a realização da pessoa humana: é, ao invés, a característica que deve acompanhar todos os valores humanos, para que o sejam realmente.
Com outras palavras: a liberdade, como adjetivo, deve acompanhar todo substantivo: senão, este último perde o seu caráter de valor. Porém, quando o adjetivo quer tornar-se substantivo, absolutiza a liberdade, autodestruindo-se, e destruindo o próprio sujeito. (Convém recordar a etimologia da palavra "absoluto": ab-solutus nos evoca o “desligamento” de qualquer outra coisa).
Contra esta absolutização formalista da liberdade, podemos citar até um autor de modo algum suspeito de “ascetismo”, Frederico Nietzsche:
"Tu te chamas livre? Quero conhecer teu pensamento dominante, e não que escapaste de um jugo. És alguém ao qual é lícito escapar de um jugo? Mais de um lançou para fora de si o seu último valor jogando fora a sua última escravidão. Livre de que? Isto pouco interessa a Zaratustra! Os teus olhos devem anunciar-me com clareza: livre para que?”[2] (o grifo é do autor).
Gostaria de aprofundar este tema recorrendo ao pensamento daquele que tem sido considerado, na literatura universal, o maior conhecedor do coração humano: F. M. Dostoievski. É um lugar comum citá-lo como o escritor que defendeu, mais do que qualquer outro, a liberdade humana; todavia soube, por outro lado, apresentar genialmente os riscos desta mesma liberdade, quando procura elevar-se como valor absoluto da existência humana. Dentro da impressionante galeria de personagens de Dostoievski, encontramos três que encarnam, de diferentes perspectivas, a tentação da liberdade absoluta, que corre o risco de levá-los à autodestruição, e em dois casos acontece (mediante o suicídio). Na perspectiva ética, encontramos Raskolnikov, de Crime e Castigo, obsessionado pela questão da posssibilidade de existirem "homens superiores", e se lhes é lícito fazer tudo (e, concretamente, se ele é um desses seres excepcionais); Kirillov, no romance Os Demônios, que encarna a radicalização teológica da liberdade, pretendendo contemporaneamente eliminar e suplantar Deus, entendido como Senhor déspota absoluto e Patrão de toda liberdade; e sobretudo Stavroguin, no mesmo romance, do ponto de vista ontológico: personagem fascinante para todos os que o rodeiam, embora se trate apenas de uma bela estátua que, infelizmente, na realidade é vazia por dentro.
Um dos melhores especialistas de Dostoievski, Luigi Pareyson, comenta:
A sua liberdade é puro arbítrio, que, não tendo diante de si nenhuma norma para violar, tampouco tem um objetivo para se propor, e portanto gira sem rumo, dissolvendo-se na apatia, na náusea, na inatividade, numa espécie de inútil experimentação e de inércia destrutiva. Seu poder era grande e temível, e grande e terrível é a destruição que daí deriva: os homens que sofreram seu influxo se perdem; e ele próprio, ‘caráter sombrio e demoníaco’, põe-se o problema supremo: ser ou não ser? Viver ou destruir-se?’ E se destrói: o suicídio imprime o selo do nada a uma vida que teve somente o nada como lema”[3].
Sem dúvida, trata-se de casos extremos; mas justamente por isto, manifestam com perfeição o perigo de uma liberdade que não aceita, humildemente, ser adjetivo que acompanha inseparavelmente os valores que realizam, humanamente – e, no nosso caso, tambémcristãmente e religiosamente – a pessoa: em primeiro lugar e antes de tudo, o amor, porque não existe amor autêntico que não seja livre. A liberdade é o incontornável terminus a quo da realização humana, abaixo do qual perdemos a nossa dignidade humana, e nos transformamos no rebanho que segue o Grande Inquisidor (e Deus nos livre de ser "grandes inquisidores" que atentam contra a liberdade dos seus irmãos!): mas de nenhum modo constitui o terminus ad quem desta realização.
4. "...É UMA EXPERIÊNCIA...”
Dentro desta constelação de valores (historicidade – liberdade – realização) ocupa um lugar privilegiado a experiência. Palavra "mágica", que tem uma íntima relação com cada um deles: permite a realização humana, no horizonte da historicidade, como momento privilegiado do exercício da liberdade.
Deixando de lado a análise, sem dúvida enriquecedora, da etimologia desta palavra a partir de diversos campos lingüísticos, sobretudo o latino (ex-perior = expertus) e o germânico (Erfahrung = er-fahren), vamos diretamente ao seu significado típico. Aqui também, convém precisar que não se trata de uma realidade "nova": nas diversas culturas existem expressões proverbiais que manifestam a dificuldade de "aprender com a cabeça do outro” e tirar proveito.
Desde sempre percebeu-se que viver tudo na primeira pessoa é algo certamente não sempre desejável, mas em todo caso inevitável.
Além disto, em praticamente todas as culturas tradicionais existem "ritos de iniciação" que tornam possível a passagem de uma etapa a uma outra da vida, experiências que envolvem a pessoa toda, e não só a sua capacidade intelectual ou afetiva, mas sim ambas as dimensões ao mesmo tempo, como também a sua realidade corporal, muitas vezes de maneira dolorosa. É mister acrescentar, todavia, que, embora esses "ritos de iniciação " persistam na cultura atual[4], em formas muitas vezes disfarçadas, existe uma diferença essencial: atualmente não se procura, através destas experiências únicas, integrar-se no passado mítico, mas abrir-se a um futuro promissor, rejeitando – algumas vezes de modo explícito - o seu passado.
Nesta linha experiencial podemos mencionar a dimensão mistagógica da catequese cristã dos primeiros séculos, que visava não apenas preparar os catecúmenos mediante aquisição de conhecimentos, mas também fazê-los viver uma experiência de encontro com o Senhor Jesus e, por meio dele, no Espírito Santo, com o Pai. Hoje em dia também, a pastoral, sobretudo a dos jovens, procura desenvolver esta dimensão essencial. Mais ainda: a experiência mística caracteriza-se justamente por este traço específico do encontro com o Deus Trino e Uno (embora não dependa da capacidade humana, mas é um dom divino).
Tudo isto nos mostra que não estamos perante uma dificuldade a superar, mas sim perante uma realidade muito rica para discernir e assumir: vencendo, sem dúvida, os perigos que implica.
a) Entre esses perigos encontramos, em primeiro lugar, o seu caráter formal
(analogamente ao que se dizia da liberdade). Dá a impressão de que toda experiência se justifica pelo próprio fato de sê-lo: quantas vezes já não ouvimos, para justificar qualquer atitude inaceitável, esta explicação: "...é uma experiência"! Parafraseando, talvez de modo irriverente, a primeira carta de Pedro: a experiência torna-se semelhante ao amor fraterno, na medida em que é um manto que “cobre a multidão dos "pecados"” (cfr. 1Pd 4, 8). Falando da experiência na formação, tenho constatado que, junto com o orgulho, é um dos impedimentos estruturais mais fortes para o arrependimento e a conversão, porque a alternativa seria privar-se da experiência, e isto é percebido, formalmente e a priori, como uma limitação e um empobrecimento. Chegou-se a dizer – graças a Deus, não na vida consagrada! – que qualquer forma de sexualidade, mesmo a mais aberrante, é preferível à abstenção do seu exercício! Parece-me o extremo formalista da avaliação da experiência enquanto tal.
b) Esta maneira de pensar muitas vezes deturpa o próprio sentido da experiência. Já o fato de passar, do singular "da" experiência, como expressão da sabedoria de quem sabe aprender da vida partindo do cotidiano e habitual, ao plural "das" experiências como momentos extraordinários e excepcionais, desloca o acento da atitude para o ato. Há uma canção mexicana que exprime magnificamente isto: “Nada te han enseñado los años, siempre caes en los mismos errores” ("Nada te ensinaram os anos: cais sempre nos mesmos erros ") que equivale a dizer: “tiveste muitas experiências, mas não tens experiência", não aprendeste nada da vida, não te tornaste um "experto" dela.
c) Desta superestima unilateral da própria experiência derivam dois grandes perigos para a vida consagrada atual: o individualismo, justamente porque ninguém pode substituir-me no aprendizado da vida: “é a minha experiência”; e junto com ele, o relativismo: "cada qual pensa conforme sua própria experiência": fora disto, todo o resto é abstração. Não há normas objetivas que possam prevalecer sobre o que a vida me "ensinou".
Gostaria de aprofundar este ponto. A direção espiritual dos religiosos em formação inicial tem-me levado à convicção de que os problemas, sobretudo no campo da afetividade, em larga medida derivam da maneira de enfrentá-los (ou até, de não querer enfrentá-los); além da atitude “da avestruz” a qual, com a cabeça enfiada na areia, pensa que ninguém está vendo a sua situação (quando, na realidade, todos estão perfeitamente informados e comentam com todos, exceto com o interessado), é típico partir do pressuposto: "devo viver sozinho esta experiência de relação afetiva, porque ninguém será capaz de entender-me: vão pensar – a começar dos meus formadores – que se trata de uma moça como qualquer outra, mas é uma pessoa única, singular”, etc... no fundo, ninguém duvida que todo ser humano é unico e singular, e por este motivo não se podem dar "receitas"; mas somos todos seres humanos, concretamente, homens ou mulheres, e por isto pode haver critérios que, dentro da inegável singularidade de cada situação, nos permitem situá-la e discerni-la o mais objetivamente possível, e sobretudo ajudarnos uns aos outros.
d) Para superar este formalismo, é preciso ressaltar que o que importa não é só fazer experiência, mas qual é o valor do qual fazemos experiência: ou seja, o próprio conteúdo. Com isto retomamos o que acima foi dito, a saber: a necessidade de superar uma educação-formação intelectualística que pretenda interiorizar conteúdos vitais sem fazer experiência deles. Falando enfaticamente, e cedendo por uma vez ao jogo de palavras: o que conta não é o valor da experiência, e sim a experiência do valor a interiorizar e assimilar. Nas Constituições dos Salesianos, o artigo central que procura caracterizar a formação como um processo permanente, traz como título: "A experiência formativa", que é assim descrita: "O salesiano faz experiência dos valores da vocação salesiana nos diversos momentos da sua existência, e aceita a ascese que este caminho comporta" (C SDB 98).
Na vida de Buda encontramos uma narração lendária muito significativa. Desde o seu nascimento, seu pai quis evitar-lhe a experiência de todo tipo de situações "negativas" que pusessem em perigo a sua percepção otimista da vida: concretamente a velhice, a doença e a morte. Todavia, essa preocupação foi contraproducente: bastou uma ocasião em que, abandonando o palácio familiar, teve diversos encontros: com um doente, um ancião e um enterro, para mergulhar-se na mais profunda crise depressiva.
Muitas vezes, com a maior boa vontade, queremos fazer algo semelhante, nos diversos campos da vida consagrada, sobretudo na etapa inicial... mas tal atitude, em vez de ser formativa, é profundamente deformante. Precisamos dizer, sem dúvida, que os nossos confrades jovens, e não tanto jovens, não entram precisamente em crise diante do olhar cansado de uma anciã próxima da morte, mas sim diante do olhar cativante de uma bela moça cheia de vida: e especialmente quando se procurou mantê-los à margem de toda experiência "perigosa" no campo da relação afetiva com as pessoas do outro sexo...



[1] F. WULF, Fenomenología teológica de la Vida Religiosa, en: Mysterium Salutis IV/2, Madrid, Ed. Cristiandad, 2ª Edición, 1984, p. 454.

[2] FREDERICO NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, Madrid, Alianza Editorial, 1984, 12ª Ed., p. 308.
[3] LUIGI PAREYSON, Le Dimensioni della Libertà in Dostoevskij, in: S. GRACIOTTI, Ed., Dostoevskij nella coscienza d’oggi, Firenze, Sansoni Ed., 1981, p. 110.
[4] Cfr., a este respeito, a extraordinária obra de MIRCEA ELIADE (por exemplo, Lo Sagrado y lo Profano, Barcelona, Ed. Labor, 6a. Ed., 1985.

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