sábado, 10 de novembro de 2012

Vida Consagrada

Para onde o Espírito nos impulsiona?

Ninguém sabe com certeza. Aqui e ali surgem pistas que precisam ainda ser testadas e experimentadas. Certamente, a vida dos religiosos e religiosas está em profundíssima transformação. Dizemos que o Espírito aponta direções e horizontes. Não é fácil ver claro.  Há neblina. Há aquilo que sabemos e aquilo que virá como resposta às nossas súplicas  prementes.
1. Nós, religiosos, como todos os discípulos do Senhor, respondemos ao seu apelo, ao seu chamamento, à sua convocação para sermos seus íntimos colaboradores, para fazermos uma profunda experiência de entrega irrestrita a Deus e aos irmãos. Foi do Cristo ressuscitado que chegou até o fundo do coração o apelo para seu seguimento. Tentamos ler os sinais desse chamamento em nossa biografia pessoal. Temos a certeza da vocação. No meio de todas as tempestades temos plena consciência desse chamamento. A religiosa idosa que cuida do refeitório das irmãs, que limpa o corredor, que salmodia na capela, que aceita os achaques da velhice, que reza toda casta, toda pobre, toda obediente é uma bênção para a Igreja e o mundo. Na vida consagrada, o que conta são as pessoas e não, em primeiro lugar, obras e prédios.
2. Vivemos, de verdade, um tempo incômodo de perplexidade e  de insegurança. Por vezes, fazemos mesmo a experiência de uma pobreza total, de uma incapacidade de encontrar soluções para dar passos firmes na direção do amanhã.  Há momentos em que não conseguimos enxergar luminosidade no horizonte. Algumas de nossas congregações  estão para fechar as portas. Muitas delas têm um alto número de religiosas e religiosos acamados (às dezenas) e que precisam de atenções e cuidados dispendiosíssimos dia e noite. Esses doentes e idosos não podem apenas ser entregues a casas bem equipadas com aparelhos e enfermeiros. Eles são o grande patrimônio das Ordens e Congregações. Quem os sucederá?  Todos os que refletem sobre as transformações da vida consagrada pedem que não alimentemos uma tal angústia.
3. Estamos convencidos de que quem mostra o caminho é o Espírito. Ele quer que aceitemos entrar no seu movimento. Não se trata de fazer por fazer, mas sentir, de fato, para onde o Espírito sopra. “A recuperação da dimensão espiritual da Igreja consiste não somente em promover cursos de espiritualidade, mas levar a sério o papel criador do Espírito em cada um dos batizados. Quando pessoas mais críticas e criativas são ignoradas ou caladas na vida real da Igreja, comete-se um pecado contra o Espírito Santo. Se os cristãos quiserem dar resposta à sede de espiritualidade que o mundo tem teremos, antes de tudo, que escutar o Espírito que fala pelas pessoas” (Alberto de Mingo, C.SS.R, in Vida Nueva  2414).  Muitos rapazes e moças, homens e mulheres maduros com muito carisma, não são aproveitados nas metas que o Espírito sugere.
4. Não é possível imaginar qualquer renovação da vida cristã e consagrada sem que religiosos e cristãos façam constantemente profundas e repetidas experiências do Senhor. Não se trata de um mero recitar de salmos mais ou menos mecânica e rotineiramente, mas de habitar o  próprio interior, deixar-se impregnar do som da voz de Deus e acolhê-lo num coração modesto e humilde. Não há outra saída. Os consagrados precisam rever sua vida de intimidade com o Senhor. O ponto mais importante da vida de uma casa de consagrados é a vivência e a celebração comunitária da Eucaristia. Não se pode fazer economia desse aspecto. Todos os esquemas de redesenhamento supõem homens e mulheres profundamente de Deus.  Nossas paróquias ou santuários serão espaços de formação de leigos com profundíssima vida de oração.
5. Os  membros da vida consagrada vivem um tempo de extrema pobreza: poucas vocações, religiosos idosos e doentes,  tentativas nem sempre bem-sucedidas de redimensionar e redesenhar o Instituto. Pode ser que  nessa extrema pobreza os religiosos estejam abrindo caminhos novos: poucos religiosos, casas simples, vida fraterna e missionária, vontade de descobrir o novo.  Nada de desânimo:  “ ‘Levantai os olhos e olhai os campos já brancos, prontos para a colheita’ (Jo 4,35). Somos convidados a levantar nossos olhos, a ter o mesmo olhar de Jesus e ver o mundo bom que já tem seus frutos. ‘O essencial é invisível aos olhos’, diz a raposa ao Pequeno Príncipe.  A “contração” na vida consagrada – e  na Igreja – nos obriga a concentrar no essencial, cuidar de não cair vítima da urgência ou da síndrome de salvador ou viver num  mal-estar que não acaba. O tesouro precioso das Congregações neste momento, ao meu ver,  não são as obras mas as pessoas.  As pessoas, os consagrados haverão de estar no coração da vida, com as pessoas que encontram. Não se pode viver a vida consagrada à parte, com o próprio carisma e atividades próprias. Será fundamental estar no mundo, disposto a perder a ideia de desfraldar a bandeira do próprio carisma. Não ocupamos uma posição assimétrica com o mundo: vivemos da reciprocidade. É o estilo da encarnação, é a identidade de nossa vida”  (Rosina Barbari,  Un futuro aperto. Vita ‘consecrata’, santità, mondo, La Rivista del Clero Italiano  12/2011, p. 869).
6. Sempre de novo será preciso beber das águas límpidas dos fundadores. Para viver em comunidade, numa dinâmica de fundação, de refundação, é preciso aprender a caminhar juntos  assumindo o risco de um amor verdadeiro, onde cada um é acolhido pelo que é, não pelo que pode fazer ou se pode tirar dele, não pelo que ele quereria ser. No caminho comunitário, o povo do êxodo, é capaz de atravessar desertos de nossos tempos para se dirigir com fé e confiança à terra nova da promessa. Falando de comunidade não se pode esquecer da solidão e do silêncio. Longe de ser fuga ou isolamento, a solidão  faz com que cada um aceite ser diferente dos outros. “Na solidão perdemos a ilusão de ser tudo para os outros e ali se mede melhor quanto é necessário despojar-se da necessidade de consumir ou de ser consumido por eles. Caminho do desejo, do amor, a solidão é uma prova pela qual devem passar, em diferentes níveis, os amigos, os esposos e os que vivem em comunidades” ( cf. Une  manière de vivre. Les religieux aujourd’hui, Philippe Lécrivain, Lessius, Bruxelles, 2009, p. 168). Quando se fala em comunidade, não se pode esquecer o silêncio:  “Na vida comum, convém aprender a acolher o sempre estranho que é o outro e não reduzi-lo ao que já é conhecido. Para tanto, é preciso aprender a se calar e aceitar serem questionadas algumas certezas”.
7. Nossas casas serão simples, nosso vestir modesto, nosso coração aberto, nossa criatividade sem limites, nosso interior sempre sedento de verdadeiros encontros, nossa vida como uma vela acesa que se consome.  Transpiraremos serenidade e alegria  e não haveremos de destilar pessimismo.
8. Nossa missão no mundo?  Estar presente onde pudermos. Com modéstia, mas com transparência. Marie-Étienne Bély, em instigante texto publicado em Esprit et  Vie, oct. 2001,  disserta sobre o mundo a ser evangelizado. Diante da lógica  da engrenagem da força: “Todos sabemos, ao menos depois de Gandhi, que a prática da não-violência nas relações humanas supõe inteligência e imaginação, infinita paciência e respeito pelo outro. Este conjunto de  atitudes engendra  uma ética do olhar, por exemplo, não fechar os olhos diante das múltiplas  facetas do ser humano: horrores para serem denunciados, realçar o que há de bom, sem exagerar com sofreguidão tanto no positivo quanto no negativo;  uma ética da palavra (falar  do outro em sua ausência como se ele estivesse presente) o que faz secar a fonte da maledicência;  uma ética do ouvido (capacidade de tudo ouvir com discrição), em outras palavras, domínio sobre si mesmo que saiba integrar as forças vivas da pessoa do conjunto e nunca desesperar”.
9. Diante da lógica do  dinheiro  responder pela gratuidade e a contemplação:  “Num mundo  marcado pelo aleatório, o arbitrário, o vago, a multiplicidade de escolhas, a tarefa que cabe aos cristãos é a educação para o querer, orientar para finalidades que não sejam apenas de hoje, imediatas, aprender a vencer-se a si mesmo, sem competição nem rivalidade”. Uma vida que não se erga sobre oscilações das  bolsas”. Os franciscanos são homens e mulheres da desapropriação, do êxtase diante do Deus rico que nos cumula de bens, pessoas que aprendem assim a dar a vida pelos outros.
10. Dois grandes campos de atividade se desenham diante do horizonte dos franciscanos, religiosos ou leigos:  um sério e profundo trabalho de educação do ser  humano todo desconjuntado, desarrumado, perdido, asfixiado, dopado, tonto por tantos ruídos e um empenho seríssimo de  formação do cristão. Não se trata apenas de uma catequese meio up to date. Nossas casas serão centros de formação de cristã, de catequese em todos os níveis e em todos os sentidos.  Esse trabalho de educação à fé haverá de ser feito pela  família. Pelos corredores de nossos locais de atividade, de nossas paróquias haverão de circular casais e famílias.
11. Estar à escuta do mundo contemporâneo  significa detectar as grandes interrogações dos homem moderno. Qual o sentido da vida? Como viver profundamente o amor? Como ajudar as novas gerações a se aprumarem na vida? Como alimentar no fundo do coração a saudade de Deus? Como reagir a um mundo de aparência, de salve-se-quem-puder, de individualismo?  Os religiosos darão o testemunho de viverem na paz e na alegria em suas fraternidades. Alguém escreveu que a amizade fundada na verdade, a vida fraterna, constituem verdadeiros laboratórios de educação para a autonomia e para a liberdade pessoal.  As pessoas não podem continuar a existir despersonalizadas, como se fossem joguetes de uma sociedade imoral que não respeita seu mistério. Os religiosos e os cristãos serão profetas,  fermento e testemunhas para o serviço da palavra e para fazer com que as pessoas reencontrem o caminho do coração. Tudo com muita simplicidade, sem alarido, sem confusão, sempre numa postura de pobreza e de despojamento.
Afinal de contas, para onde o Espírito está nos impulsionando?
Fonte: www.franciscanos.org.br