sexta-feira, 27 de setembro de 2013

“O caminhante e a trilha”

caminho
Por: Frei Elói Piva

Caro confrade,
tenho o prazer de lhe fazer um convite. Confie! Venha comigo! Empreenderemos uma pequena viagem. Certamente será de seu agrado. Assim o desejo. Assim o espero.
O itinerário que lhe proponho não é novo… Desinteresse?! Não! Pode parecer contraditório, mas, justamente ao relativizar a novidade, pretendo provocar sua curiosidade. É que no itinerário que lhe proponho, o que é antigo é sempre novo, o que é novo é antigo, o que é plural é também singular e o que é singular, único e pessoal, promove e possibilita encontro; e, quando assim age, pode ser expressão de amor.
Este itinerário de viagem é o da fé. Itinerário embutido em trilhas de vida humana, em inúmeras histórias de amor! Tantas quantas forem as pessoas de fé! Mesmo restringindo-nos ao cristianismo ou ao catolicismo é um desafio para a memória individual ou coletiva sequer enumerá-las. Não menos numerosas e diferenciadas são também as apreciações a respeito destas trilhas e dos itinerários percorridos. Avaliações que se recriam na mesma proporção dos admiradores e/ou dos questionadores. Até controvérsias se estabelecem e agrupamentos sociais se formam a partir das observadas características de sendas de fé. É que o atributo de ricas e significativas não sinaliza somente um convite, cuja resposta poderia então ser opcional; assinala, sim, o decisivo, o fundamental, a luz na escuridão. Por isso, o interesse. Acredito que seja assim. Nesta linha, uma carta, inédita porquanto escrita a quatro mãos, foi-nos dirigida recentemente pelo papa Francisco, intitulada Lumen Fidei. Ele e o papa emérito Bento XIV falam do que é comum à nossa Tradição e do que lhes é pessoal e específico de cada um, recordando, de maneira atual, o que gratuitamente recebemos e condividimos, e assinalando o que é próprio e pessoal, ou seja, o que só diz respeito a Você, a mim ou a quem quer que seja. E, assim como eles, outras pessoas manifestarão sua fé, explicitando-a de diferentes formas – como estamos fazendo aos leitores de Comunicações, neste “Ano da fé”.
Aceito o convite, percorrida até aqui a estrada, por gentileza, conte Você, a partir de agora, aos leitores de Comunicações o percurso que fizemos na trilha de vida de duas pessoas que tivemos a graça conhecer, aí descobrindo traços do itinerário da fé.
– Então, ao iniciar a acenada viagem, oportunidade que se nos oferecia para observação e constatação de um caminho de fé, procuramos um acesso. Aceitamos uma imaginária carona do Google Earth – programa de mapeamento virtual de nossa casa comum, a “mãe Terra”. E, a partir de algum ponto imaginário nas alturas, aproximamos seu rosto e/ou achegamo-nos a ele. Achegamo-nos a um aglomerado urbano. Individuamos um prédio, desses prédios de conjunto populacional popular, de 7-8 andares, cujo acesso físico aos apartamentos só pode ser feito por uma escada de um metro de largura. Feito isso, agradecidos ao Google pela noção de distância e de aproximação que nos deu, bem como pela viagem imaginária que nos proporcionou, dele nos despedimos. Na verdade e no âmbito de liberdade, nós é que estabelecemos o direcionamento que o “Google”, sempre tomado como ficção, podia nos oferecer.
Individuado o supracitado e anônimo prédio, a senha para chegar ao apartamento 605 tinha-nos sido oferecida pela informação de frágeis e limitativas condições de vida de um casal de idade relativamente avançada (na casa dos 70 e 80). As frágeis e limitativas condições de vida são constituídas, principalmente, pela enfermidade que prende à cama e/ou que clama por muletas para um deles; que tolhe autonomia e torna nossos debilitados anfitriões dependentes de pessoas que os ajudem ou que carreguem a um deles escada-abaixo, escada-acima, em situações de emergência; que os faz depender do socorro de parentes, amigos e vizinhos para locomoção de carro ou para algumas outras necessidades. Nessas circunstâncias, o sonho da liberdade de ir e vir e de alterar semelhantes condições físicas se faz sumamente saudoso e desejável! Elas, as condições, são determinantes, e ele, o sonho, reina platonicamente! Mas, não haveria alguma trilha iluminada, perguntávamos nós a nós mesmos?
Com certeza, queríamos acreditar. Podemos até imaginar que esta constatação e este comprometimento inerente à nossa visita sejam próprios dos discípulos de Jesus Cristo, porque, assim como Maria empreendeu uma viagem movida pela ajuda a prestar, apresentou-se diante da casa de Zacarias, cumprimentou Isabel e foi convidada a entrar, também nós empreendemos uma viagem em direção a periferias existenciais, como se exprime o Papa Francisco, batemos à porta do “apertamento” 605, soamos a campainha, e fomos generosamente acolhidos por seu Raimundo dos Santos e Dona Conceição Aparecida, ou, simplesmente, por Raimundo e Conceição. Olhos nos olhos, saudações, conversa vai, conversa vem, agradecimentos e pedidos a Deus, ao Deus de Jesus Cristo, “amante” da vida e de cada ser humano e, por isso, em Jesus Cristo, crucificado. Seu sacramento de entrega ou de amor, sobremaneiramente sinalizado no “Pão da vida”, partilhamos em cada visita.
Depois do primeiro encontro, outros se seguiram, também com outras pessoas. E, sempre fomos agraciados com a mesma renovada e afável acolhida, com simplicidade e alegria; mas também com a fala do medo e da coragem, da dúvida e da fé, da clara consciência da “prisão e da janela” que aquelas concretas circunstâncias impõem e possibilitam. Refazer o caminho do prédio, apertar o botão do “apertamento”, esperar autorização, subir as escadas, aguardar a porta se abrir, cumprimentar, entrar, ir até o acamado significou permitir que aquele caminho humano e de fé daquelas pessoas nos interpelasse, nos instruísse e nos encantasse. Ao visitá-los fomos nós mesmos agraciados, porque também fomos visitados e por uma visita que nos liberta e salva, porque nos oferece algo que vem de Deus. Significou também para Raimundo e Conceição a possibilidade de intuírem que nosso caminho também é singular, de agradecerem a Deus e de perceberem que seus fardos tornarem-se um pouco mais leves.
– Fale-me um pouco mais do Raimundo e da Conceição, pede Você. – Sim, respondo. Raimundo, 74, há mais de ano, tinha ficado preso à cama por uma artrose generalizada; agora já perambula pelo “apertamento” com andador; e, há pouco, fez o primeiro ensaio bem sucedido de descer as escadas, embora amparado. Lentamente progride em sua melhora física. A “cabeça”, ótima: guarda bela e carinhosa recordação dos filhos e amigos de trabalho, continua inveterado e entusiasta flamenguista e, na conversa, sempre encontra uma palavra-alternativa, alguma expressão que atesta seu bom humor e movimenta a conversa. Conceição, 77, foi doméstica durante muitos anos, e catequista; foi e continua sendo exímia doceira; ela é quem exerce a função, digamos, de ministra das “relações exteriores” para seu marido Raimundo.
Bem, diante dessas circunstâncias, aqui tão somente esboçadas, Você talvez imagine que ela, a Conceição, poderia ser uma pessoa abatida, desalentada, cansada da vida, descontentemente inconformada. Nada mais equivocado, porém. Ela é quem vai às farmácias, aos médicos, aos mercados; é ela quem corre em busca de uma cama mais adequada para o marido ou de outras melhorias; é ela quem se ocupa e se preocupa com seus 5 filhos, noras e cunhados, netas e netos; é ela quem prepara a comida, lava a roupa, cuida da casa; e tudo isso, não com uma saúde de ferro, mas apesar de recorrentes câimbras e de ter que andar meio torta, portanto, com dificuldades! A conclusão que então se descola é que ela é uma guerreira, porque, apesar de tudo, anda sempre disposta e cheia de iniciativa; participa, assim que pode, de celebrações litúrgicas; admira e gosta de canto-coral; nos finais de semana ainda arma uma barraquinha de doces, na rua, ocasião em que alguns rapazes, homens e mulheres estão sempre por perto, conversando, animando, dispostos e prontos a ajudá-la em decorrência da simpatia dela, de sua luta, de sua amizade e de seu bem-querer a todos, em suma, de sua contagiante alegria e disposição.
Os filhos, as filhas e os familiares, de condições econômicas e de saúde também visivelmente limitadas, sempre a visitam, atentos ao que podem fazer por seus pais, avós, sogros; um dos filhos mora fora do país, mas o coração de mãe e pai torna-o sempre presente. Desejam, porém, vê-lo pessoalmente mais uma vez antes de morrer ou, vê-lo “e depois morrer”, como afirmaram certa ocasião, lembrando Simeão!
Então, o que se passa em nossa cabeça é que tudo isto só pode ser resultado de uma íntima resposta de amor e, portanto, de fé a quem amou primeiro e é fiel em seu amor. Observamos ainda que a positividade diante dos limites de vida, a dedicação, a iniciativa, a bondade e a religiosidade estão em contraposição à paciência (ciência do padecimento) ao fazer as contas com o dinheiro contado e a situação de quase imobilidade. Estas indicações são, pois, estrelas que os distingue. Por isso, por ocasião de uma de nossas visitas, perguntamos: Conceição, como seria pra senhora uma pessoa de fé? Que imagem a senhora se faz de uma pessoa de fé? “Ouça” o que ela respondeu, depois de pensar um pouco: “uma pessoa de fé é uma pessoa ‘que se entrega totalmente’, que se lança, que confia plenamente. É como se tivesse dentro dela uma fonte de energia e de consolo; mas, muitas vezes, falando por mim, não é fácil manter o pique – advertiu. Não se tem fé segura de uma vez por todas. Muitas vezes sinto vontade de gritar, de interpelar, de xingar. Mas depois passa”. E complementou: “eu sei em quem acredito, sei que Ele está ali, que ele está aqui, que se encontra à minha frente. Ele também sabe”. Tivemos, então, certeza: ela falava de sua experiência pessoal. E, perguntamo-nos: não seria este que suscita tamanha confiança o Deus de Jesus Cristo, testemunhado e transmitido pela comunidade de fé cristã, pelos cristãos também individualmente considerados?!
Depois, percorrendo nossa trilha pessoal, considerávamos entre nós, se a Fé não seria como uma forte luz que ilumina as trevas da estrada, uma feliz e operosa esperança que rasga a trilha da vida e que faz com que o percurso pessoal e comunitário seja gratificante. Acreditamos que pessoas de fé são semelhantes a Raimundo e Conceição, independentemente das condições sociais, pois sabem em quem confiam, a quem se entregam de maneira plena e total; são operosas, constroem e testemunham o Reino de Deus, pois se entregam operosamente aos desígnios de Deus; são amantes da vida, propositivas, amigas; são corajosas, perseverantes; admiradoras e respeitadoras de todas as pessoas; amáveis e, não obstante, trazendo em seu corpo e em sua alma marcas do Crucificado; experienciam, de alguma forma, que Deus veio e vem amorosamente a seu encontro em Jesus Cristo e, por isso, creem; lembram, assim os primeiros discípulos, que foram ao deserto em busca do Messias, e que pelo assombro inusitado que a pessoa de Jesus despertava neles, acolheram o dom da fé e vieram a ser discípulos de Jesus (cf. DAp 21), lembrando também São Paulo que assim exprime sua experiência de vida: “Ele me amou e por mim se entregou” (Gl 2,20) – sou, então, por sua graça, uma nova criatura!
E, agora, caro confrade, amigo leitor, amiga leitora: certamente, Você não viu a fé andando por aí. Mas, com certeza, Você conhece muitos outros Raimundos e muitas outras Conceições, “conjugados” ou não. Você, certamente, conhece muitos deles em circunstâncias bem ou completamente diferentes daquelas dos moradores de nosso “apertamento” 605. Sim, concordo: a variedade de conjunturas pouco importa. Em diferentes situações pessoas como Raimundo e Conceição são estrelas no universo da fé! São como flores pequeninas, despercebidas talvez, mas igualmente maravilhosas. E não são poucas! Por acaso, elas não lhe são motivo de admiração e louvor? Uma vez que transpõem montanhas, atravessam rios, ultrapassam névoas escuras, não iluminam tua própria trilha de vida e todas as trilhas? Diriam, certamente, teólogos e místicos: sua vida está escondida em Deus, mas sua manifestação se deixa ver para quem tem olhos para ver; trazem Deus à superfície de suas obras, à superfície da encarnação. Quem ama vê; quem vê admira, quem admira se comove e age de acordo com os desígnios de Deus.
Fazendo um balanço, manifestamos esta esperança: Quem sabe o esboço desta singular viagem seguindo, na trilha da vida, o itinerário de fé de Raimundo e de Conceição não te ajude a recordar as viagens que Você fez seguindo pessoas de fé! Quem sabe não te ajude a desejar mais itinerários de fé em trilhas de vida e, principalmente, a continuar em sua trilha de vida seu itinerário de fé…
O caminhante sou eu, é Você, somos nós; a trilha é a do Amor que suscita o itinerário da fé.
fonte: http://www.itf.org.br/o-caminhante-e-a-trilha-texto-do-frei-eloi-piva.html

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Vida Consagrada

Dom Orani João Tempesta, OCist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro



No primeiro domingo deste mês vocacional rezamos pelos nossos padres. No segundo, agradecemos a vida e o dom da paternidade, colocando nossos pais, vivos e os que estão na glória de Deus, diante do altar. O terceiro domingo foi dedicado a todos os consagrados: freiras, freis, irmãos e irmãs que dão a sua vida pelo Evangelho na contemplação ou na ação pastoral, segundo os conselhos evangélicos. A vida consagrada é um desdobramento da vida batismal, na esteira dos Conselhos Evangélicos da pobreza, da obediência e da castidade.

Toda a nossa existência de fiéis cristãos deveria ter como destaque a nossa vida batismal, pois nela somos incorporados a Cristo, nela somos libertos do pecado e assim regenerados pelo Espirito Santo. Nela nos tornamos participantes da vida trinitária. Portanto, a nossa consagração começa no batismo, pois este é fonte de responsabilidade e de deveres, tal como servir aos outros na comunhão da Igreja.

A vida consagrada em que se professa os três votos mencionados é uma resposta a esta consagração batismal dentro de um chamado a um carisma especial na Igreja. É uma resposta radical ao extraordinário amor de Deus sobre nossas vidas. É um ir além, numa vida comprometida com a implantaçaõ do Reino de Deus entre os homens e entre as mulheres.

O cristão sempre é chamado a jogar suas redes em águas mais profundas, ao se provocar pelo estímulo a uma nova vida, mais radicalizada e mais enrraizada em Deus. Corre-se o risco para Deus, e descobre-se que só Deus basta para nossa vida.

No processo da consagração ouve-se a voz de Deus que chama. A Igreja reconhece este chamado e o autentica ao autorizar a existência dos Institutos de Vida Consagrada, que tanto bem fizeram e fazem ao Povo de Deus e a toda população, através da entrega da própria vida pelo irmão, e, além dos vários serviços de missão, evangelização, catequese, também nos diversos organismos de caridade, educacionais, do cuidado com a saúde, no desvelo com a terceira idade e de promoçao humana existentes.


Deus chama homens e mulheres, através da vida consagrada, para um missão de amor em favor dos homens, e, principalmente, pelos preferidos: os pobres.

A riqueza da Igreja, já nos dizia o mártir São Lourenço, celebrado nesta semana, não está nos seus edifícios que são do Povo de Deus ou no propalado, cobiçado e imaginado poder financeiro, mas nos pobres, nos que sofrem, nos que a Igreja acolhe, educa, cuida e apresenta como o seu inexorável tesouro que jamais a traça comerá.

Os religiosos e congrados são um dom precioso da Igreja e do mundo, este tão carente, tão sedento de Deus e de sua palavra, mas também de testemunhos.

Porém, antes mesmo do serviço que os religiosos prestam às pessoas, a sua mais importante missão é o "ser", quer dizer, o testemunho de vida em comunidade, doada diariamente com alegria e generosidade. São os "sinais escatológicos" do Reino de Deus. Nestes últimos tempos, ao lado de antigas tradições de consagrados juntaram-se muitas outras novas experiências de grupos de pessoas que atualizam dentro das atuais realidades e, muitas vezes, como sinais de contradição: o chamado de Deus para essa consagração radical. Dentro dos vários estilos de carismas encontramos o equilíbrio entre a vida de ação e contemplação, de oração, de trabalho – presentes em cada pessoa, em cada instituto e na própria estrutura eclesial.

No mundo do descartável, do prazer sem limites, na opulência do dinheiro e do ter, da autossuficiência, sentimo-nos atraídos, através da vida consagrada, a uma outra proposta de seguimento mais sublime de Jesus Cristo através da dedicação a Deus pelos conselhos evangélicos e, desta forma, são um doce e eloquente sinal de Deus neste mundo.

No dia de oração pela Vocação à Vida Religiosa quis enviar um afetuoso abraço de encorajamento na sua vocação e na sua missão a todos os consagrados que trabalham no âmbito de nossa Arquidiocese, que fazem a diferença do rosto de Cristo e da Igreja no Rio de Janeiro. Agradecemos a Deus por nos proporcionar tantas vocações na vida consagrada, e pedimos-Lhe que estes continuem a ser um sinal de graça perene no mundo, na construção da justiça e do amor.

Por isso, agradecidos a Deus pela vocação consagrada, peçamos novas e autênticas vocações para este serviço e que a Trindade ilumine todos os que continuam dando passos para que o Reino de Justiça e de Paz se estabeleça entre nós pelo testemunho dos que deixam tudo para trás, por amor, para ser totalmente de Jesus e da Igreja. Que Deus guarde, abençoe e proteja os consagrados! 
Fonte: http://www.reflexoesfranciscanas.com.br/2010/08/vida-consagrada.html