Características Gerais
fonte: http://www.itf.org.br/a-patristica-pre-agostiniana-2.html

Com o nome de patrística entende-se o período do pensamento cristão que se seguiu à época neotestamentária, e chega até ao começo da Escolástica: isto é, os séculos II-VIII da era vulgar. Este período da cultura cristã é designado com o nome de Patrística, porquanto representa o pensamento dos Padres da Igreja, que são os construtores da teologia católica, guias, mestres da doutrina cristã. Portanto, se a Patrística interessa sumamente à história do dogma, interessa assaz menos à história, em que terá importância fundamental a Escolástica.
A Patrística é contemporânea do último período do pensamento grego,
o período religioso, com o qual tem fecundo contato, entretanto dele
diferenciado-se profundamente, sobretudo como o teísmo se diferencia do
panteísmo. E é também contemporâneo do império romano, com o qual também
polemiza, e que terminará por se cristianizar depois de Constantino.
Dada a culminante grandeza deAgostinho, a Patrística será dividida em
três períodos: antes de Agostinho, período em que, filosoficamente,
interessam especialmente os chamados apologistas e os padres alexandrinos ;
Agostinho, que merece um desenvolvimento à parte, visto ser o maior dos
Padres; depois de Agostinho vem o período que, logo após a
sistematização, representa a decadência da Patrística.
O II Século
Os Apologistas e os Controvertistas
A Patrística do II século é caracterizada pela defesa que faz do
cristianismo contra o paganismo, o hebraísmo e as heresias. Os padres
deste período podem-se dividir em três grupos: os chamados padres apostólicos , os apologistas e os controversistas .
Interessam-nos particularmente os segundos, pela defesa racional do
cristianismo contra o paganismo; ao passo que os primeiros e os últimos
têm uma importância religiosa, dogmática, no âmbito do próprio
cristianismo.
Chamam-se apostólicos os escritos não canônicos, que nos
legaram as duas primeiras gerações cristãs, desde o fim do primeiro
século até a metade do segundo. Seus autores, quando conhecidos, recebem
o apelido de padres apostólicos, porquanto floresceram no templo dos
Apóstolos, ou os conheceram diretamente, ou foram discípulos imediatos
deles.
Costuma-se designar como o nome de apologistas os escritores
cristãos dos fins do segundo século, que procuram de um lado demonstrar
a inocência dos cristãos para obter em favor deles a tolerância das
autoridades públicas; e provar do outro lado o valor da religião cristã
para lhe granjear discípulos. Seus escritos, portanto, são, por vezes,
apologias propriamente ditas, por vezes, obras de controvérsia, às
vezes, teses. E são dirigidas às vezes contra os pagãos, outras vezes
contra os hebreus. Os apologistas, mais cultos do que os padres
apostólicos, freqüentemente são filósofos – por exemplo, São Justino
Mártir – ainda que não apresentem uma unidade sistemática; continuam
filósofos também depois da conversão, e se esforçam por defender a fé
mediante a filosofia. Para bem compreendê-lo, é mister lembrar que o
escopo por eles visado era, sobretudo, por em focos os pontos de contato
existentes entre o cristianismo e a razão, entre o cristianismo e a
filosofia. E apresentavam o cristianismo como uma sabedoria, aliás, como
a sabedoria mais perfeita, para levarem, gradualmente, até à conversão
os pagãos.
O maior dos apologistas é certamente São Justino.
Flávio Justino Mártir nasceu em Siquém na Palestina em princípios do
segundo século, e morreu mártir no ano 170. Depois de Ter peregrinado
pelas mais diversas escolas filosóficas - peripatética, estóica,
pitagórica – em busca da verdade para a solução do problema da vida,
abandonando oplatonismo, último estádio da sua peregrinação filosófica,
entrou no cristianismo, onde encontrou a paz. Ufana-se ele de ser
filósofo e cristão; leigo embora, Justino dedicou sua vida à difusão e
ao ensino do cristianismo. Imitando os filósofos, abriu em Roma uma
escola para o ensino da doutrina cristã. Suas obras são duas Apologias - contra os pagãos – e um Diálogo com o judeu Trifão - contra os hebreus. Escreveu suas obras nos meados do segundo século.
Justino procura a unidade, a conciliação entre paganismo e
cristianismo, entre filosofia e revelação. E julga achá-la, primeiro, na
crença de que os filósofos clássicos – especialmente Platão - dependem
de Moisés e dos profetas, depois da doutrina famosa dos germes do Verbo,
encarnado pessoalmente em Cristo, mas difundidos mais ou menos em todos
os filósofos antigos.
O III Século:
Os Alexandrinos e os Africanos
O terceiro século apresenta um interesse particular pelo que diz
respeito ao pensamento cristão. Tentou-se um renovamento do paganismo
com bases no panteísmo neoplatônico e nos cultos orientais, fundidos
numa característica síntese filosófico-religiosa em oposição ao
cristianismo, que já ia afirmando mesmo culturalmente. Os Padres deste
período polemizam filosoficamente com os pensadores pagãos, levados a
estimarem seus adversários.
O cristianismo, sem mudar a sua fisionomia original, está em
condições de desenvolver do seu seio um pensamento, uma filosofia, uma
teologia, que representarão a sua essência doutrinal. Daí a distinção
que então se afirmou entre os simples fiéis e os gnósticos -
sábios – cristãos. Este gnosticismo cristão se afirmou especialmente em
Alexandria do Egito, o grande centro cultural da época, mesmo do ponto
de vista católico. Naquele famoso didascaléion , naquela celebrizada escola catequética, espécie de faculdade teológica, foram luminares Clemente e Orígenes.
O cristianismo filosófico é próprio e característico dos padres
alexandrinos, que vivem na tradição cultural helenista, enaltecedora e
potenciadora dos valores intelectuais, teoréticos, especulativos,
metafísicos, dos quais teremos, em tempo oportuno, o primeiro sistema
orgânico de teologia cristã, graças a Orígenes. É, entretanto,
hostilizado pelos padres chamados africanos, pertencentes não à África
oriental, ao Egito, mas África ocidental, latina, que se ressentem, por
conseguinte, do espírito prático, pragmatista, jurídico, moralista
latino – que produziu os estóicos e os cínicos romanos – em oposição ao
gênio grego. Se bem que entres os padres africano-latinos apareçam vulto
notáveis, como por exemplo Tertuliano, os padres africanos – bem como
os padres latinos em geral – não apresentam interesse particular para a
história da filosofia.
Clemente Alexandrino - Tito Flávio Clemente – nasceu
no ano 150, provavelmente em Atenas, de família pagã. Converteu-se ao
cristianismo talvez levado por exigências filosóficas; desejoso de um
conhecimento mais profundo do cristianismo, empreendeu uma série de
viagens em busca de mestres cristãos. Depois de ter visitado a Magna
Grécia, a Síria e a Palestina, foi, pelo ano 180, para Alexandria do
Egito, onde o seu espírito achou finalmente paz junto do eminente mestre
Panteno. Falecido este no ano 200, Clemente foi chamado para dirigir a
famosa escola catequética, cabendo-lhe a glória de ter o grande Orígines
entre seus discípulos. Devido às perseguições anticristãs do imperador
Setímio Severo, que mandou fechar a escola, Clemente teve de suspender o
seu ensino alguns anos depois. Retirou-se para a Ásia Menor, junto de
um seu antigo discípulo, o bispo Alexandre de Capadócia, e morreu nessa
cidade entre 211 e 216.
Embora as preocupações de Clemente sejam sobretudo morais e
pedagógicas, e os meios empregados, satisfatoriamente, religiosos e
cristãos sobretudo, valoriza ele também, e grandemente, a filosofia, à
maneira de Justino, sendo ademais dotado de uma erudição prodigiosa e de
uma cultura incomparável. As obras principais de Clemente são: o Protréptico -
isto é, o Verbo promotor da vida cristã – pequena apologia em doze
capítulos, perfeitamente acabada na forma e no conteúdo; o Pedagogo ,
em três livros, apresentado no primeiro o Verbo como educador das
almas, e indicando nos demais dois livros os vícios mais graves, que os
cristãos devem evitar; os Strômata - tapetes – que é uma
coleção de pensamentos, considerações, dissertações filosóficas, morais e
religiosas, de interesse especialmente ético.
Filosoficamente importante e característica é a distinção que faz Clemente dos cristãos em simples fiéis e gnósticos ,
isto é, sábios, perfeitos. O gnóstico cristão, diversamente do simples
fiel ou crente, é consciente de sua fé, justificando-a e organizando-a
racionalmente, filosoficamente. “Querendo harmonizar a doutrina cristã
com a filosofia pagã, acentuava demasiadamente a última, negligenciando
um tanto a Sagrada Escritura e a Tradição”.
Discípulo de Clemente, Orígenes, chamado adamantino por
sua energia incomparável, é o maior expoente filosófico da escola
alexandrina. Nasceu em Alexandria do Egito, pelo ano 185, de família
cristã. O precoce menino recebeu do pai, Leônidas, a primeira formação
literária e, sobretudo, religiosa. Durante a perseguição de Septímio
Severo, Orígenes, desprezando os mais graves perigos, foi encarregado
pelo bispo de Alexandria, Demétrio, da direção da famosa escola didascaléion ,
que o seu mestre Clemente teve que abandonar. Tinha então Orígenes
dezoito anos. Aos vinte e cinco, sentindo a necessidade de conhecer
profundamente as doutrinas que desejava combater e querendo completar a
sua formação, escutou – como Plotino - as lições de Amônio Saca.
Empreendeu então longas viagens para se instruir, sobretudo,
religiosamente, e para atender aos desejos de grandes personagens que
queriam consultá-lo. Ordenado sacerdote no ano 230 pelos bispos de
Cesaréia e de Jerusalém, contra a vontade de seu bispo, de volta à
pátria, foi proibido por este de ensinar e foi condenado, devido também a
algumas opiniões heterodoxas contidas na sua grande obra Sobre os Princípios ,
e também por ciúme, talvez, no dizer de São Jerônimo. Retirou-se então
Orígenes para a Palestina, abrindo em Cesaréia uma escola teológica (
chamada depois neo-alexandrina – , que superou a de Alexandria pelo seu
caráter científico. Aí lecionou ainda durante vinte anos, falecendo em
Tiro pelo ano 254.
A atividade literária de Orígenes não conhece igual,
atribuindo-se-lhe milhares de obras. Prescindindo dos escritos
exegéticos e as céticos, que não nos interessam, mencionamos a obra Sobre os Princípios e os oito livros Contra Celso . Por princípios Orígenes
entende os artigos principais do ensino da Igreja, e as verdades
primordiais deduzidas mediante a razão teológica das premissas
reveladas, por falta de revelação formal. A obra Sobre os Princípios nos proporciona a ciência baseada na Revelação, e representa uma suma teológica verdadeira
e própria. Representa, talvez, a primeira grande síntese doutrinal da
Igreja, segundo a tendência metafísica dos doutores orientais. Granjeou
ao autor grande nomeada e contém o origenismo , que depois suscitou a grande polêmica origenista. A obra Contra Celso é a mais célebre de Orígenes sob o aspecto apologético. É uma resposta à obra Sermão Verdadeiro de
Celso, filósofo pagão. Antes de tudo, declara Orígenes que a melhor
apologia do cristianismo é constituída pela vitalidade divina da Igreja,
isto é, pela sua força e virtude para a reforma moral dos homens e pela
sua difusão universal, apesar dos ataques dos adversários. A maior
parte do escrito é, todavia, dedicada ao exame atento e pormenorizado
das profecias, dos milagres e das afirmações solenes de Cristo, visto
que Celso, que tinha estudado as fontes do cristianismo, o ataca em
todos os pontos. Nesta obra, Orígenes ostenta uma erudição
extraordinária, uma serenidade nobre e inigualável, bem como uma fé
inabalável. Orígenes pode ser considerado o verdadeiro fundador da
teologia científica, bem como o primeiro sistematizador do pensamento
cristão em uma vasta síntese filosófica.
O IV Século:
Os Luminares de Capadócia
O século quarto, especialmente a Segunda metade, representa a idade
de ouro da Patrística. Basta lembrar, para a igreja oriental, Atanásio, o
malho do arianismo, os luminares de Capadócia – Basílio, Gregório
Nazianzeno e Gregório de Nissa – , e João Crisóstomo, o mais celebrado
representante da escola de Antioquia; para a igreja ocidental, Ambrósio
de Milão e Jerônimo. Os padres dessa época se exprimem em aprimorada
forma clássica e possuem uma profunda cultura filosófica. Os maiores
dentre eles são solidamente formados na solidão monástica e ascética e
pertencem, geralmente, às altas classes sociais. A igreja católica,
declarada livre pelo Edito de Milão, protegida por Constantino, torna-se
religião do estado com Teodósio. Estas condições de paz e de
privilégio, eram certamente favoráveis à cultura cristã.
Entretanto, a grandeza da Patrística, no quarto século, não é tanto
científica, quanto dogmática, teológica. A teologia, sobretudo graças
aos luminares de Capadócia, torna-se uma construção intelectual
sistemática, imponente, devido naturalmente à filosofia, à lógica
aristotélica, que proporcionam o instrumento, o método, para a precisão e
a organização do dogma. As grandes heresias da época obrigaram os
padres a defender racionalmente, filosoficamente, a doutrina católica,
atacada especialmente por Ário (256-336), padre alexandrino oriundo da
Líbia, negador da divindade do Verbo. A heresia ariana – arianismo – foi
condenada pelo concílio de Nicéia (325), sendo Atanásio o mais
destacado e forte opositor.
São João Crisóstomo, de Antioquia, nasceu de família
ilustre, pelo ano 344. Recebeu uma educação clássica aprimorada,
estudando retórica, filosofia, direito, que, depois de batizado,
valorizou cristãmente na solidão e no ascetismo. Padre em Antioquia, e
depois bispo de Constantinopla, faleceu, degredado pela fé, em 407. É
significativo neste grande prelado o senso profundo da vaidade do mundo,
e a grande estima do cristianismo, concebido como ascética.
Também os grandes representantes da escola neo-alexandrina, os
luminares de Capadócia, foram grandes testemunhas do caráter
fundamentalmente ascético do Cristianismo. São Basílio,
nascido em Cesaréia de Capadócia pelo ano de 330 de família rica e
cristã, fez longos e aprofundados estudos, aperfeiçoando-se em Atenas.
Recebido o batismo, abandona o mundo e se retira para a vida ascética,
organizando a vida solitária dos que o seguiram, e escrevendo uma Grande Regra e uma Pequena Regra ,
para a vida monástica, em que a atividade dos monges é distribuída
entre o trabalho, o estudo, a oração, pelo que será considerado o
legislador do monaquismo oriental. Trata-se, porém, de regras morais, e
não jurídicas, destinadas a um monaquismo culto, aristocrático. Grande
admirador de Orígenes, insigne promotor da beneficência cristã quando
bispo de Cesaréia, e organizador da vida monástica na Capadócia, faleceu
em 379. Também São Gregório, chamado Nizianzeno,
nasceu pelo ano 330 em Capadócia, de família cristã, fez estudos
aprofundados, que aperfeiçoou em Atenas. Também ele admirou e praticou a
vida ascética com o amigo Basílio, compartilhando com ele a admiração
para com Orígenes. Bispo de Sásima antes e, em seguida, de
Constantinopla, inflamou os fiéis com a sua pregação brilhante e
comovedora. Aristocrático e delicado, pouco afeito à vida prática,
retirou-se depois para a solidão, em conformidade com o seu ideal
ascético e contemplativo, falecendo pelo ano 390.
São Gregório de Nissa foi o maior dos luminares de
Capadócia e, talvez, de todos os padres gregos sob o aspecto
especulativo e filosófico. Irmão de Basílio, nasceu pelo ano 355 em
Cesaréia e recebida uma informação cultural aprimorada, foi destinado ao
estado eclesiástico; entretanto, deixou-se desviar da sua vocação, foi
professor de retórica e casou-se. As exortações do irmão e de Gregório
Nazianzeno persuadiram-no da vaidade do mundo, até que afinal,
abandonando a cátedra de retórica, retirou-se para a vida ascética
contemplativa. Em seguida, foi feito bispo de Nissa, cidadezinha da
Capadócia, primando pela sua cultura teológica e filosófica. Faleceu,
provavelmente, em 395. Gregório de Nissa é o maior filósofo dos padres
gregos. Esforça-se para mostrar que os dados da razão e os ensinamentos
da fé não se hostilizam, mas se harmonizam reciprocamente. Possui, como
verdadeiro filósofo, o gosto das definições claras e das classificações
metódicas. Como em teologia é origenista, em filosofia é neoplatônico.