
Por: Frei Elói Piva
Caro confrade,
tenho o prazer de lhe fazer um convite. Confie! Venha comigo!
Empreenderemos uma pequena viagem. Certamente será de seu agrado. Assim o
desejo. Assim o espero.
O itinerário que lhe proponho não é novo… Desinteresse?! Não! Pode
parecer contraditório, mas, justamente ao relativizar a novidade,
pretendo provocar sua curiosidade. É que no itinerário que lhe proponho,
o que é antigo é sempre novo, o que é novo é antigo, o que é plural é
também singular e o que é singular, único e pessoal, promove e
possibilita encontro; e, quando assim age, pode ser expressão de amor.
Este itinerário de viagem é o da fé. Itinerário embutido em trilhas
de vida humana, em inúmeras histórias de amor! Tantas quantas forem as
pessoas de fé! Mesmo restringindo-nos ao cristianismo ou ao catolicismo é
um desafio para a memória individual ou coletiva sequer enumerá-las.
Não menos numerosas e diferenciadas são também as apreciações a respeito
destas trilhas e dos itinerários percorridos. Avaliações que se recriam
na mesma proporção dos admiradores e/ou dos questionadores. Até
controvérsias se estabelecem e agrupamentos sociais se formam a partir
das observadas características de sendas de fé. É que o atributo de
ricas e significativas não sinaliza somente um convite, cuja resposta
poderia então ser opcional; assinala, sim, o decisivo, o fundamental, a
luz na escuridão. Por isso, o interesse. Acredito que seja assim. Nesta
linha, uma carta, inédita porquanto escrita a quatro mãos, foi-nos
dirigida recentemente pelo papa Francisco, intitulada Lumen Fidei.
Ele e o papa emérito Bento XIV falam do que é comum à nossa Tradição e
do que lhes é pessoal e específico de cada um, recordando, de maneira
atual, o que gratuitamente recebemos e condividimos, e assinalando o que
é próprio e pessoal, ou seja, o que só diz respeito a Você, a mim ou a
quem quer que seja. E, assim como eles, outras pessoas manifestarão sua
fé, explicitando-a de diferentes formas – como estamos fazendo aos
leitores de Comunicações, neste “Ano da fé”.
Aceito o convite, percorrida até aqui a estrada, por gentileza, conte Você, a partir de agora, aos leitores de Comunicações
o percurso que fizemos na trilha de vida de duas pessoas que tivemos a
graça conhecer, aí descobrindo traços do itinerário da fé.
– Então, ao iniciar a acenada viagem, oportunidade que se nos
oferecia para observação e constatação de um caminho de fé, procuramos
um acesso. Aceitamos uma imaginária carona do Google Earth – programa de
mapeamento virtual de nossa casa comum, a “mãe Terra”. E, a partir de
algum ponto imaginário nas alturas, aproximamos seu rosto e/ou
achegamo-nos a ele. Achegamo-nos a um aglomerado urbano. Individuamos um
prédio, desses prédios de conjunto populacional popular, de 7-8
andares, cujo acesso físico aos apartamentos só pode ser feito por uma
escada de um metro de largura. Feito isso, agradecidos ao Google pela
noção de distância e de aproximação que nos deu, bem como pela viagem
imaginária que nos proporcionou, dele nos despedimos. Na verdade e no
âmbito de liberdade, nós é que estabelecemos o direcionamento que o
“Google”, sempre tomado como ficção, podia nos oferecer.
Individuado o supracitado e anônimo prédio, a senha para chegar ao
apartamento 605 tinha-nos sido oferecida pela informação de frágeis e
limitativas condições de vida de um casal de idade relativamente
avançada (na casa dos 70 e 80). As frágeis e limitativas condições de
vida são constituídas, principalmente, pela enfermidade que prende à
cama e/ou que clama por muletas para um deles; que tolhe autonomia e
torna nossos debilitados anfitriões dependentes de pessoas que os ajudem
ou que carreguem a um deles escada-abaixo, escada-acima, em situações
de emergência; que os faz depender do socorro de parentes, amigos e
vizinhos para locomoção de carro ou para algumas outras necessidades.
Nessas circunstâncias, o sonho da liberdade de ir e vir e de alterar
semelhantes condições físicas se faz sumamente saudoso e desejável!
Elas, as condições, são determinantes, e ele, o sonho, reina
platonicamente! Mas, não haveria alguma trilha iluminada, perguntávamos
nós a nós mesmos?
Com certeza, queríamos acreditar. Podemos até imaginar que esta
constatação e este comprometimento inerente à nossa visita sejam
próprios dos discípulos de Jesus Cristo, porque, assim como Maria
empreendeu uma viagem movida pela ajuda a prestar, apresentou-se diante
da casa de Zacarias, cumprimentou Isabel e foi convidada a entrar,
também nós empreendemos uma viagem em direção a periferias existenciais,
como se exprime o Papa Francisco, batemos à porta do “apertamento” 605,
soamos a campainha, e fomos generosamente acolhidos por seu Raimundo
dos Santos e Dona Conceição Aparecida, ou, simplesmente, por Raimundo e
Conceição. Olhos nos olhos, saudações, conversa vai, conversa vem,
agradecimentos e pedidos a Deus, ao Deus de Jesus Cristo, “amante” da
vida e de cada ser humano e, por isso, em Jesus Cristo, crucificado. Seu
sacramento de entrega ou de amor, sobremaneiramente sinalizado no “Pão
da vida”, partilhamos em cada visita.
Depois do primeiro encontro, outros se seguiram, também com outras
pessoas. E, sempre fomos agraciados com a mesma renovada e afável
acolhida, com simplicidade e alegria; mas também com a fala do medo e da
coragem, da dúvida e da fé, da clara consciência da “prisão e da
janela” que aquelas concretas circunstâncias impõem e possibilitam.
Refazer o caminho do prédio, apertar o botão do “apertamento”, esperar
autorização, subir as escadas, aguardar a porta se abrir, cumprimentar,
entrar, ir até o acamado significou permitir que aquele caminho humano e
de fé daquelas pessoas nos interpelasse, nos instruísse e nos
encantasse. Ao visitá-los fomos nós mesmos agraciados, porque também
fomos visitados e por uma visita que nos liberta e salva, porque nos
oferece algo que vem de Deus. Significou também para Raimundo e
Conceição a possibilidade de intuírem que nosso caminho também é
singular, de agradecerem a Deus e de perceberem que seus fardos
tornarem-se um pouco mais leves.
– Fale-me um pouco mais do Raimundo e da Conceição, pede Você. – Sim,
respondo. Raimundo, 74, há mais de ano, tinha ficado preso à cama por
uma artrose generalizada; agora já perambula pelo “apertamento” com
andador; e, há pouco, fez o primeiro ensaio bem sucedido de descer as
escadas, embora amparado. Lentamente progride em sua melhora física. A
“cabeça”, ótima: guarda bela e carinhosa recordação dos filhos e amigos
de trabalho, continua inveterado e entusiasta flamenguista e, na
conversa, sempre encontra uma palavra-alternativa, alguma expressão que
atesta seu bom humor e movimenta a conversa. Conceição, 77, foi
doméstica durante muitos anos, e catequista; foi e continua sendo exímia
doceira; ela é quem exerce a função, digamos, de ministra das “relações
exteriores” para seu marido Raimundo.
Bem, diante dessas circunstâncias, aqui tão somente esboçadas, Você
talvez imagine que ela, a Conceição, poderia ser uma pessoa abatida,
desalentada, cansada da vida, descontentemente inconformada. Nada mais
equivocado, porém. Ela é quem vai às farmácias, aos médicos, aos
mercados; é ela quem corre em busca de uma cama mais adequada para o
marido ou de outras melhorias; é ela quem se ocupa e se preocupa com
seus 5 filhos, noras e cunhados, netas e netos; é ela quem prepara a
comida, lava a roupa, cuida da casa; e tudo isso, não com uma saúde de
ferro, mas apesar de recorrentes câimbras e de ter que andar meio torta,
portanto, com dificuldades! A conclusão que então se descola é que ela é
uma guerreira, porque, apesar de tudo, anda sempre disposta e cheia de
iniciativa; participa, assim que pode, de celebrações litúrgicas; admira
e gosta de canto-coral; nos finais de semana ainda arma uma barraquinha
de doces, na rua, ocasião em que alguns rapazes, homens e mulheres
estão sempre por perto, conversando, animando, dispostos e prontos a
ajudá-la em decorrência da simpatia dela, de sua luta, de sua amizade e
de seu bem-querer a todos, em suma, de sua contagiante alegria e
disposição.
Os filhos, as filhas e os familiares, de condições econômicas e de
saúde também visivelmente limitadas, sempre a visitam, atentos ao que
podem fazer por seus pais, avós, sogros; um dos filhos mora fora do
país, mas o coração de mãe e pai torna-o sempre presente. Desejam,
porém, vê-lo pessoalmente mais uma vez antes de morrer ou, vê-lo “e
depois morrer”, como afirmaram certa ocasião, lembrando Simeão!
Então, o que se passa em nossa cabeça é que tudo isto só pode ser
resultado de uma íntima resposta de amor e, portanto, de fé a quem amou
primeiro e é fiel em seu amor. Observamos ainda que a positividade
diante dos limites de vida, a dedicação, a iniciativa, a bondade e a
religiosidade estão em contraposição à paciência (ciência do
padecimento) ao fazer as contas com o dinheiro contado e a situação de
quase imobilidade. Estas indicações são, pois, estrelas que os
distingue. Por isso, por ocasião de uma de nossas visitas, perguntamos:
Conceição, como seria pra senhora uma pessoa de fé? Que imagem a senhora
se faz de uma pessoa de fé? “Ouça” o que ela respondeu, depois de
pensar um pouco: “uma pessoa de fé é uma pessoa ‘que se entrega
totalmente’, que se lança, que confia plenamente. É como se tivesse
dentro dela uma fonte de energia e de consolo; mas, muitas vezes,
falando por mim, não é fácil manter o pique – advertiu. Não se tem fé
segura de uma vez por todas. Muitas vezes sinto vontade de gritar, de
interpelar, de xingar. Mas depois passa”. E complementou: “eu sei em
quem acredito, sei que Ele está ali, que ele está aqui, que se encontra à
minha frente. Ele também sabe”. Tivemos, então, certeza: ela falava de
sua experiência pessoal. E, perguntamo-nos: não seria este que suscita
tamanha confiança o Deus de Jesus Cristo, testemunhado e transmitido
pela comunidade de fé cristã, pelos cristãos também individualmente
considerados?!
Depois, percorrendo nossa trilha pessoal, considerávamos entre nós,
se a Fé não seria como uma forte luz que ilumina as trevas da estrada,
uma feliz e operosa esperança que rasga a trilha da vida e que faz com
que o percurso pessoal e comunitário seja gratificante. Acreditamos que
pessoas de fé são semelhantes a Raimundo e Conceição, independentemente
das condições sociais, pois sabem em quem confiam, a quem se entregam de
maneira plena e total; são operosas, constroem e testemunham o Reino de
Deus, pois se entregam operosamente aos desígnios de Deus; são amantes
da vida, propositivas, amigas; são corajosas, perseverantes; admiradoras
e respeitadoras de todas as pessoas; amáveis e, não obstante, trazendo
em seu corpo e em sua alma marcas do Crucificado; experienciam, de
alguma forma, que Deus veio e vem amorosamente a seu encontro em Jesus
Cristo e, por isso, creem; lembram, assim os primeiros discípulos, que
foram ao deserto em busca do Messias, e que pelo assombro inusitado que a
pessoa de Jesus despertava neles, acolheram o dom da fé e vieram a ser
discípulos de Jesus (cf. DAp 21), lembrando também São Paulo que assim
exprime sua experiência de vida: “Ele me amou e por mim se entregou” (Gl
2,20) – sou, então, por sua graça, uma nova criatura!
E, agora, caro confrade, amigo leitor, amiga leitora: certamente,
Você não viu a fé andando por aí. Mas, com certeza, Você conhece muitos
outros Raimundos e muitas outras Conceições, “conjugados” ou não. Você,
certamente, conhece muitos deles em circunstâncias bem ou completamente
diferentes daquelas dos moradores de nosso “apertamento” 605. Sim,
concordo: a variedade de conjunturas pouco importa. Em diferentes
situações pessoas como Raimundo e Conceição são estrelas no universo da
fé! São como flores pequeninas, despercebidas talvez, mas igualmente
maravilhosas. E não são poucas! Por acaso, elas não lhe são motivo de
admiração e louvor? Uma vez que transpõem montanhas, atravessam rios,
ultrapassam névoas escuras, não iluminam tua própria trilha de vida e
todas as trilhas? Diriam, certamente, teólogos e místicos: sua vida está
escondida em Deus, mas sua manifestação se deixa ver para quem tem
olhos para ver; trazem Deus à superfície de suas obras, à superfície da
encarnação. Quem ama vê; quem vê admira, quem admira se comove e age de
acordo com os desígnios de Deus.
Fazendo um balanço, manifestamos esta esperança: Quem sabe o esboço
desta singular viagem seguindo, na trilha da vida, o itinerário de fé de
Raimundo e de Conceição não te ajude a recordar as viagens que Você fez
seguindo pessoas de fé! Quem sabe não te ajude a desejar mais
itinerários de fé em trilhas de vida e, principalmente, a continuar em
sua trilha de vida seu itinerário de fé…
O caminhante sou eu, é Você, somos nós; a trilha é a do Amor que suscita o itinerário da fé.
fonte: http://www.itf.org.br/o-caminhante-e-a-trilha-texto-do-frei-eloi-piva.html
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