RESUMO: O status eclesial dos religiosos leigos é algo ainda não definitivamente estabelecido. O clericalismo faz com que sejam identificados com o estado clerical, afastando-os da origem laical própria da Vida Religiosa (VR). Para o autor, isto não é resultado apenas de uma determinação canônica, mas resultado de uma construção teológica não conseqüente com a compreensão cristã de salvação. Soteriologia deficitária que tem suas conseqüências na Eclesiologia e na Teologia dos Ministérios. Para resgatar o específico da VR leiga masculina é necessário repensar a compreensão cristã de salvação e, a partir dela, construir uma Igreja-comunidade-de-iguais onde carismas e ministérios específicos possam multiplicar-se e serem colocados a serviço da construção do Reino.
PALAVRAS-CHAVE: Vida Religiosa; Religiosos leigos; Salvação; Eclesiologia.
1 Localizando os religiosos leigos na Igreja
Para começar, deve-se reconhecer que os religiosos leigos somos uma ínfima minoria na VR e que esta, por sua vez, representa uma parcela numericamente insignificante dentro do conjunto do cristianismo. Na Igreja Católica Romana, a VR representa em torno a 0,12%. Se olharmos a VR, 70% é composta por religiosas. Os religiosos homens completam os outros 30%, sendo 18% clérigos e 12% leigos .
Estamos falando então de um pequeno grupo (os religiosos leigos) dentro de outro grupo pequeno (os religiosos homens) num grupo um pouco maior (a VR masculina e feminina) dentro de uma Igreja (a Católica Romana) que é apenas uma entre outras tantas igrejas cristãs…
A consciência da pequenez numérica, no entanto, não diminui sua significância teológica. Diante de Deus, não é a quantidade o que faz a importância, mas a fidelidade a Ele e a Seu projeto. Sem a pretensão de querer assumir a figura do “resto de Israel” (cf. Jr 31,7), temos a consciência de que, se Deus manteve em sua Igreja esta forma de vida, ela é importante e é um chamado de Deus e um caminho de santidade.
É o que expressa o Vaticano II em Perfectae Caritatis, 10:
A vida religiosa laical, tanto de homens como de mulheres, constitui em si mesma um estado completo da profissão dos conselhos evangélicos. Por isso, o sagrado Concílio, que a tem em grande estima, tão útil ela, é à missão pastoral da Igreja na educação da juventude, cuidado dos doentes e outros ministérios, confirma os seus membros na vocação e exorta-os a adaptar a sua vida às exigências modernas.
No entanto, conforme a União dos Superiores Gerais (apud CIARDI, P. 135)
Vinte anos depois do fim do Concílio, a Vida Religiosa leiga masculina permanece não compreendida pela opinião pública e não é valorizada na Igreja, tampouco pelos sacerdotes e um certo número de bispos. A vocação religiosa dos irmãos é avaliada como vocação de segunda categoria, de menor importância. Esta permanece desconhecida e muitas vezes marginalizada, vista negativamente.
A que se deve isso? Nossa intuição é que, como o deixa ver a declaração da União dos Superiores Maiores acima citada, há um problema de linguagem (o leigo) que manifesta um problema sociológico (a opinião pública) e um problema eclesial (a não valorização). Com efeito, o significado das palavras não surge do nada, mas se constrói a partir das vivências. Por trás das palavras, há um problema sobre o sentido da vida cristã e por isso podemos afirmar que há também um problema teológico, sendo a Teologia o campo do saber que busca compreender a vida de fé.
A palavra leigo, em quase todas as línguas, está carregada de um sentido negativo. Leigo é aquele que não é experto em uma determinada matéria. No campo religioso, é aquele que não é instruído nas questões religiosas ou aquele que não se importa com essas questões. Em alguns ambientes, leigo é aproximado ao que não se interessa por questões da Igreja e, em alguns casos, o que se opõem à Igreja. Desse modo, numa sociedade marcada pelo religioso e pelo eclesial como é a nossa, brasileira e latino-americana, para que alguém possa se assumir como leigo sem que isto seja visto como negativo, tem que dar uma boa dose de explicações…
No ambiente eclesial católico romano, se perguntarmos às pessoas “que é um leigo?”, a resposta será quase sempre formulada de forma negativa: é aquele que não é ordenado, um não-clérigo. Ou seja, ser leigo é uma negação, uma deficiência, um ser menos em relação aos clérigos. Não é diferente a realidade entre os próprios religiosos leigos que têm dificuldade ou até se opõem a chamar-se a si mesmo de “religiosos leigos” e preferem dizer “religiosos irmãos”. Estranho, pois o próprio Concílio, como vimos em Perfectae Caritatis, n. 10, fala tranquilamente de vida religiosa laical…
O Vaticano II, especialmente na Constituição Dogmática Lumen Gentium, fez um grande esforço para resgatar a compreensão da Igreja Povo de Deus onde todos, por sua pertença a esse Povo, marcada pelo Batismo, participam do Povo Sacerdotal (LG 10-11), profético (LG 12) e real (LG 25-27;34-36). É o Sacerdócio Comum dos Fiéis (LG 10) que faz com que todos os cristãos tenhamos a mesma dignidade diante de Deus.
A Igreja, no entanto, conforme o mesmo Concílio, enquanto comunidade humana, é também uma “sociedade hierarquicamente organizada” (LG onde há uma porção que tem a missão de governar (o clero, principalmente os bispos: cf. LG 6;8;14, etc) e outra porção que necessita ser governada (os leigos: cf. LG 37).
Estes, os leigos, são definidos pelo Concílio de duas maneiras. Primeiro é dito o que eles não são e depois o que eles são:
Por leigos entendem-se aqui todos os cristãos que não são membros da sagrada Ordem ou do estado religioso reconhecido pela Igreja, isto é, os fiéis que, incorporados em Cristo pelo Batismo, constituídos em Povo de Deus e tornados participantes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e real de Cristo, exercem, pela parte que lhes toca, a missão de todo o Povo cristão na Igreja e no mundo (LG 31).
Por esta afirmação de LG (e por sua estrutura como um todo) se poderia compreender que na Igreja há três tipos de pessoas (estados): o dos clérigos, o dos religiosos e religiosas e o dos leigos e leigas.
Porém, o mesmo Concílio, ao definir em seguida o que é a VR, diz:
Tendo em conta a constituição divina hierárquica da Igreja, este estado não é intermédio entre o estado dos clérigos e o dos leigos; de ambos estes estados são chamados por Deus alguns cristãos, a usufruirem um dom especial na vida da Igreja e, cada um a seu modo, a ajudarem a sua missão salvadora (LG 43).
Sem deixar lugar a dúvidas, o Concílio diz aqui que na Igreja há somente dois estados: o dos clérigos e o dos leigos. A VR é composta assim por pessoas dos dois estados, não constituindo ela um estado próprio, um terceiro estado intermédio entre o clero e o laicato.
Ao analisar estes textos, alguns tomam uma posição mais afim a LG 31 e acentuam a proximidade da VR com o estado clerical e a distanciam do laicato. No extremo, esta posição chega a uma assimilação da VR masculina à Ordem Clerical e à clericalização das religiosas que passam a ser vistas como meio-padres. Outros acentuam a dimensão laical da VR com o intuito de aproximá-la dos leigos e de superar o clericalismo na Igreja. outros tentam harmonizar as duas afirmações. É o caso de Ciardi (1994, p. 137) quando diz:
Na Igreja existe uma dupla acepção da palavra ‘leigo’, com base numa dupla distinção. Existe a distinção entre leigos e clérigos com base nos ministérios ordenados: é uma distinção que poderíamos chamar de vertical. É um critério de distinção que encontramos no âmbito de um mesmo Instituto, onde há leigos e presbíteros. Todavia, isto não é suficiente para definir o ‘religioso leigo’. Há um outro critério de distinção no Povo de Deus, entre leigos e religiosos, baseado numa vocação específica a um carisma particular: é uma distinção que poderíamos chamar horizontal. Na mesma vida religiosa entram pessoas provenientes de ambas as condições, já dadas pelo primeiro critério de distinção: leigos e clérigos. E o irmão religioso, pelo fato de possuir uma vocação para o seguimento e para a consagração se distingue, como pessoa consagrada, dos leigos. Baseado neste segundo critério de distinção, os irmãos religiosos não podem ser definidos como leigos.
A limitação da afirmação se torna evidente se tentarmos aplicar a mesma lógica aos religiosos clérigos e tentar dizer, parafraseando o autor, que “os religiosos clérigos não podem ser definidos como clérigos”. Com certeza ninguém, hoje, se atreve a isso na Igreja Católica… Ou então, o que é teologicamente mais grave, assumir com todas as letras – tomando as palavras do autor – que a condição laical (dos leigos que não são religiosos) não é uma “vocação específica” nem constitui um “particular carisma” na Igreja .
O Direito Canônico, ao tentar aplicar o Concílio à normatividade da Igreja Católica Romana, ao falar da composição da Igreja, assim se expressa:
Cân. 207 § 1. Por instituição divina, entre os fiéis, há na Igreja os ministros sagrados, que no direito são também chamados clérigos; e os outros fiéis são também denominados leigos.
Logo em seguida, no segundo parágrafo do mesmo número, esclarece a natureza da VR:
§ 2. Em ambas as categorias, há fiéis que, pela profissão dos conselhos evangélicos, mediante votos ou outros vínculos sagrados, reconhecidos e sancionados pela Igreja, consagram-se, no seu modo a Deus e contribuem para missão salvífica da Igreja; seu estado, embora não faça parte da estrutura hierárquica da Igreja, pertence, contudo a sua vida e santidade.
E diz mais adiante,
Cân. 588 § 1. O estado de vida consagrada, por sua natureza, não é nem clerical nem laical.
§ 2. Denomina-se instituto clerical aquele que, em razão do fim ou objetivo pretendido pelo fundador ou em virtude de legítima tradição, está sob a direção de clérigos, assume o exercício de ordem sagrada e é reconhecido como tal pela autoridade da Igreja.
§ 3. Chama-se instituto laical aquele que, reconhecido como tal pela autoridade da Igreja, em virtude de sua natureza, índole e finalidade, tem empenho próprio, que é definido pelo fundador ou por legítima tradição, e que não inclui o exercício de ordem sagrada.
A partir desta definição e seguindo a Matos (2000, p. 56), podemos dizer que há, na forma como está organizada a Igreja Católica Romana hoje, dois tipos de leigos. Os leigos tout court, ou seja, “os fiéis batizados que vivem normalmente imersos nas realidades seculares da família e do trabalho” e os “leigos consagrados em suas diversas modalidades existenciais”. Quando falamos de religiosos leigos “nos referimos a um homem consagrado que conserva seu estado laical sendo membro de um Instituto de Vida Consagrada ‘inteiramente laical’ ou de um Instituto reconhecido canonicamente como clerical”.
O mesmo se poderia dizer dos clérigos. Há clérigos tout court e há clérigos que pertencem a um instituto de VR. Aqueles são chamados de clérigos seculares e estes de religiosos clérigos. Desse modo nos parece que as coisas ficam muito mais claras e muito mais próximas da realidade da vida na Igreja e, nela, dos religiosos.
A VR, em suas origens, tanto históricas como teológicas, é eminentemente leiga. Hoje em dia, numericamente, a maior parte da VR continua sendo leiga. Por que, então, temos que nos fazer, nós, religiosos leigos que optamos por manter nossa condição laical, a pergunta pela nossa identidade? E por quê, às vezes, há um certo malestar, tanto em nós como naqueles que nos ouvem, aos nos referirmos a nós mesmos, com as palavras do próprio Concílio (cf. PC 10), religiosos leigos?
Tentaremos, no passo a seguir, apontar algumas razões teológicas pelas quais chegamos a esta situação. Mais do que exaustivas, querem ser reflexões indicativas e que nos ponham a pensar, tanto a nós como ao conjunto da VR e à Igreja na qual vivemos.
2 Teologia do sacerdócio e ministérios eclesiais
Conforme Clodovis Boff (1994, p. 581) há duas razões que fazem com que a VR masculina laical seja relegada em relação à VR masculina clerical: “as necessidades pastorais, especialmente missionárias, que obrigam a fazer uso da VR ou a empurram para a ordenação” e “a importância do culto litúrgico na VR, especialmente as ‘ordenações absolutas’, ou seja, não destinadas a uma Comunidade, mas ad missam, ou seja, à celebração das ‘missas privadas’”.
Dando por suposto que a VR é um valor em si e que, por consequência, não pode ser vista apenas a partir da missão e que a missão dos religiosos leigos é tão importante como a dos religiosos clérigos, queremos nos deter no segundo ponto assinalado por Clodovis Boff, em que diz que “tanto num caso como no outro, joga fortememente uma concepção particular (hoje discutível) do sacerdócio (…) visto como base de todos os ministérios e orientado para o altar” (Boff, 1994, p. 581).
Da mesma opinião é Francisco Taborda (1980, p. 50) quando, ao analisar a situação dos irmãos leigos na Compania de Jesus, diz:
O mal entendido da distinção de jesuítas plenos (padres) e jesuítas plenos, sim, mas não tão plenos (irmãos) provém da concepção pós-tridentida, anti-protestante e sacerdotalista do ministério. Se o padre é ontologicamente superior ao leigo, se ele é o ‘pagé’, que conhece como aplacar a divindade, se ele é o consagrador, então evidentemente que o leigo é um cristão (e, portanto, também um religioso) de segunda categoria. Então só o padre é propriamente Igreja. (…) No momento em que se reconhece que o ministério é uma função na Igreja e que a Igreja como todo é o corpo sacerdotal, então não tem maior sentido que o ministro se dedique a algo (como pesquisa científica, a administração) que lhe tira a possibilidade de exercer o ministério ou vice-versa .
Seguindo esta linha de raciocínio, vemos que se trata, pois, da questão dos ministérios na Igreja e, neles, especificamente, da questão do sacerdócio e da relação entre ministérios ordenados e ministérios leigos. A Eclesiologia é o campo onde devem ser situados os ministérios. A Igreja, por sua vez, é Comunidade de Salvação, ou seja, o conjunto de homens e mulheres que se sente chamado por Deus – e responde afirmativamente a esse chamado – para ser no mundo sinal e instrumento de sua salvação. Por consequência, o pano de fundo mais amplo, no qual toda Eclesiologia e toda Teologia dos Ministérios se fundamenta, é a Soteriologia. Não temos aqui possibilidade para aprofundar em cada um destes pontos e do encadeamento entre eles. Vamos prosseguir apenas mencionando-os e relacionando-os no limite e na medida em que esta nossa reflexão o exige.
3 Salvação em Cristo, nova comunidade e novo sacerdócio
Não se pode afirmar, sem forçar o texto, que haja, no Novo Testamento, uma Eclesiologia explícita. Nele, no entanto, estão presentes elementos que servirão como fundamento para a construção da reflexão sobre o ser e o organizar-se eclesial .
Na tradição bíblica neotestamentária não há nenhuma definição que se aproxime da atual compreensão de ‘leigo’ ou de ‘clérigo. Conforme Tamayo-Acosta (2009)
o termo grego kleros de onde provém clero, clérigo, aparece duas vezes no Novo Testamento, porém com um sentido muito diferente ao que tem hoje. At 1,17 utiliza a palavra kleros ao falar da eleição de Matias como substituto de Judas no grupo dos Doze. De Matias se diz que obteve um posto no serviço do apostolado. 1 Pd 5,3 designa com essa palavra às partes da comunidade confiadas aos responsáveis. Com Orígenes, kleros começa a empregar-se com referência aos servidores eclesiásticos e em contraposição a leigo. esse será o significado que terminará por impor-se. A palavra leigo (do grego laos), significa etimologicamente, a pertença a um povo. Não aparece no Novo Testamento e é utilizada, pela primeira vez, na carta de Clemente de Roma aos Coríntios e posteriormente por outros autores (Clemente d eAlexandria, Tertuliano, Orígenes…) para referir-se ao povo crente enquanto distinto dos oficiantes do culto, ou aos fiéis em contraposição aos diáconos e sacerdotes.
No Novo Testamento, todo membro da comunidade é parte da mesma realidade chamada por Deus e por Ele consagrada: “Porém vocês são uma raça eleita, um reino de sacerdotes, uma nação consagrada, um povo que Deus fez seu para proclamar suas maravilhas; pois Ele os chamou das trevas para sua luz admirável” (1Pe 2,9). Todo membro da comunidade é parte do mesmo, único e indivisível Povo de Deus e se define a partir de sua relação com Ele. Por sua adesão a Cristo, todo cristão e toda cristã é salvo (Rm 10,9), eleito (Rm 1,6), santo (1Cor 1,2) e discípulo (At 11,26). Juntamente com a expressão Povo de Deus (1Pe 2,10), também as expressões Assembléia de Deus (At 20,28) e Corpo de Cristo (1Cor 12,27) são usadas para expressar essa particular relação de todos os membros para com Deus.
O que torna os cristãos serem diferentes, não são as relações internas na comunidade. O diferencial do cristão é sua relação com o mundo, que é de uma oposição inconciliável. Os cristãos, já agora, fazem parte da realidade escatológico presente no mundo, rechaçam tudo o que há no mundo e vivem sua vida na radical expectativa da manifestação definitiva de Deus (cf. ALMEIDA, 2006, p. 20).
Nas relações internas da comunidade, o que caracteriza os cristãos é a radical fraternidade/sororidade. A fé comum e a vida em comum são as expressões concretas desta relação (cf. At 6,3; 1Cor 6,6).
Nas comunidades há carismas específicos recebidos por uns e por outros e que são destinados a toda a comunidade. A diversidade de carisma, no entanto, não cria na comunidade qualquer espécie de hierarquia. A diversidade de carismas gera serviço e comunhão (cf. Rm 12; 1Cor 12).
A fundamentação para a compreensão igualitária da comunidade cristã é a superação, em Jesus Cristo, da compreensão veterotestamentária de santidade/salvação e a estruturação da comunidade que resulta desta nova compreensão .
Na compreensão levítico-sacerdotal, a santidade é constituída pela separação de tudo o que é do mundo. Toda a vida religiosa do povo de Israel, especialmente a que gira ao redor do templo, constrói-se a partir das prescrições legais e rituais que estabelecem o que é puro e o que é impuro. O Sumo Sacerdote é, ao mesmo tempo, guardião e realização pessoal do ideal de pureza legal e ritual e, em virtude desta posição, tem a função de intermediário da salvação entre Deus e o povo. Ele oferece sacrifícios puros em favor dos impuros que não podem fazê-lo.
Os demais membros da comunidade de Israel de definem por sua relação com este “centro de pureza”. Quanto mais perto do mediador, mais perto da salvação; quanto mais afastado do mediador, mais afastado da salvação.
A Encarnação do Filho de Deus é a manifestação, na pessoa de Jesus, da vontade, por parte do próprio Deus, de superar a separação entre Deus e o mundo e a declaração de que, para Deus, nada é impuro ou indigno de salvação. A Ressurreição de Jesus e, em sua carne, da carne de toda a humanidade, é o movimento de divinização (união em Deus) de tudo o que é humano e, na humanidade, de toda a criação (cf. Rm 8,19).
O cristianismo, nascido da raiz judaica, torna-se teologica e historicamente possível na medida em que a comunidade dos seguidores de Jesus logra romper com a barreira cultural, mental, legal, religiosa, social e cultual que separava os judeus dos outros povos e consegue compreender que toda a humanidade, independente de sua condição étnica, social ou de gênero, é digna de Deus e, diante d’Ele, tem a mesma sacralidade e possibilidade de salvação (At 10,15; Gal 3,28; 1Cor 12,13) .
Nesta nova comunidade onde todos vivem a mesma experiência da única e universal salvação em Jesus Cristo, já não há necessidade de mediadores entre Deus e a humanidade: Jesus Cristo é o único e definitivo mediador (cf. 1Tim 2,5).
4 Da distinção carismática e ministerial à Igreja hierárquica e piramidal
A passagem da distinção carismática e ministerial (pluralidade de carismas e ministérios nas Igrejas apostólicas) em estruturas funcionais e hierárquicas se introduz na comunidade cristã quando está deixa de ser uma comunidade escatológica margina ao Império Romano e passa a assumir as estruturas sociais e a compreensão religiosa imperial que lhes dá fundamento:
Cessadas as perseguições, se distanciam cada vez mais os clérigos e os leigos que a expectativa do martírio aproximava. Suprimido o martírio, o mesmo ideal de vida cristã se rebaixa, desfazendo-se aquela tensão entre ser e dever-ser, indispensável ao crescimento das pessoas e ao aperfeiçoamento das instituições. A Igreja, de certa forma, se reconcilia com o mundo: o ‘mundo’ não persegue mais aos cristãos; a religião cristã é adaptada ao império, o qual não tardará em declará-la religião oficial; o lugar vazio deixado pelos sacerdotes pagãos é agora ocupado com naturalidade pelo sacerdote cristão (ALMEIDA, 2006, p. 49).
A “virada constantiniana” é o ponto simbólico desta mudança que, na realidade, foi um processo historicamente muito mais longo e estruturalmente complexo que começou já no início do séc. II da era cristã e alcançará sua plena expressão no Decretum Gratiani (1140-1142) que distingue e opõem clérigos e leigos, estabelecendo uma diferenciação funcional que, na elaboração teológica produzida para justificá-la, torna-se ontológica e dogmática (cf. ALMEIDA, 2006, p. 42-55)
Em temos práticos, o clero se apropria de forma excludente da capacidade da produção de bens religiosos (liturgia, sacramentos) e da produção de sentido religioso (pregação e teologia). Neste contexto surge a categoria leigo com o sentido de pessoas incapacitadas par a compreensão, a produção e a expressão de bens e de sentido religioso e eclesial.
Historicamente, a VR surge nos séculos IV-V como reação a este passo, ou seja, à assimilação, por parte do Império Romano, da comunidade cristã e a conseqüente transformação da Igreja em uma sociedade que copia os valores e os modelos organizativos da sociedade imperial romana. Neste sentido, o movimento monástico quer resgatar a dimensão profético-escatológica do cristianismo através da reconstrução de uma comunidade igualitária na espera atenta do Reino de Deus.
Em suas origens, a VR é predominantemente leiga. Clérigos, na vida monástica, são aceitos na medida em que entrem na dinâmica da convivência igualitária na nova comunidade escatológica. É o que expressa a Regra de São Bento (n. 60):
Se alguém da ordem dos sacerdotes pedir para ser recebido no mosteiro, não lhe seja concedido logo; mas, se persistir absolutamente nessa súplica, saiba que deverá observar toda a disciplina da Regra e não se lhe relaxará nada, de modo que lhe seja dito, como está escrito: “Amigo, a que vieste?”. Seja-lhe concedido, entretanto, colocar-se depois do Abade, dar a bênção e celebrar Missa, mas se o Abade mandar. Em caso contrário, não presuma fazer coisa alguma, sabendo que é súdito da disciplina regular; antes, dê a todos exemplos de maior humildade. E se, por acaso, no mosteiro surgir questão de preenchimento de cargo ou outro qualquer assunto, atente para o lugar da sua entrada no mosteiro e não para aquele que lhe foi concedido em reverência para com o sacerdócio. Se algum da ordem dos clérigos, pelo mesmo desejo, quiser associar-se ao mosteiro, sejam colocados em lugar mediano, mas desde que prometam, também eles, a observância da Regra e a própria estabilidade.
Com o passar do tempo, no entanto, as contradições eclesiais e sociais terminam por penetrar na própria VR e esta deixa de ser um espaço alternativo de vida cristã e termina por se identificar com o comum da Igreja e a reproduzir, no seu interior, as relações dissimétricas entre clérigos e leigos.
Durante a Idade Média, o clero assume as funções diretivas, não apenas no interior da Igreja, mas também em muitos âmbitos da vida social. Nobres e letrados reagem a esta tentativa de dominação. Esta disputa entre clérigos e leigos, conhecida como Querela das Investiduras, culminará com o Concordato de Worms (1122) e a imposição da supremacia papal sobre os príncipes e, por extensão, do poder religioso sobre o poder civil.
O fato de a Igreja assumir o poder temporal trouxe consigo, para o interior da Igreja, toda uma série de tensões e contradições próprias da sociedade. Ao tentar dominar o mundo, a Igreja terminou por ser dominada pelos valores do mundo que tanto combatia…
A Reforma Gregoriana, na ânsia de libertar a Igreja dos males em que havia mergulhado, acentuará ainda mais a distância entre a Igreja e o mundo. Profundamente influenciada pelo movimento monástico, a Reforma Gregoriana tentou tomar distância tanto do clero corrupto como dos leigos nobres que tentavam impor seu poder à Igreja. Um dos meios foi tentar afastar o clero do mundo dos leigos. Um resultado, talvez não desejado mas alcançado, foi que, de tanto proteger a Igreja da submissão aos leigos nobres, terminou por suprimir e dominar ainda mais aos leigos pobres .
Neste ambiente, a Vida Religiosa aparece como um “terceiro corpo” na Igreja (cf. ALMEIDA, 2006, p. 98). Os monges são colocados, com ou sem seu consentimento, no meio da turbulência da disputa do poder e das conseqüências que deste tipo de disputas sempre surgem…
Em contraposição a esta ordem estabelecida, surgem então os Movimentos Pauperistas que desembocam no surgimento das Ordens Mendicantes: franciscanos, dominicanos e carmelitas. No centro do sonho mendicante está o desejo de um outro tipo de Igreja. Seu sonho é o retorno à originalidade pobre e marginal através do seguimento radical do Evangelho. Nasce ali a proposta de uma VR identificada com Cristo pobre e a serviço dos pobres. A igualdade entre todos os membros – independente do fato de haver entre eles clérigos – e o direito a pregar são as grandes reivindicações destas novas formas de VR.
A impossibilidade ou incapacidade de realizar o “retorno ao Evangelho” e, para que isso fosse possível, as necessárias reformas na Igreja, levará à ruptura na Igreja do Ocidente. Ruptura que está nas origens das Igrejas da Reforma e, através do Concílio de Trento, da afirmação da Igreja Católica Romana. Além das questões dogmáticas levantadas por Lutero, questões disciplinares referentes à posição do clero e dos leigos na Igreja estão entre os pontos disputados.
As Igrejas surgidas da Reforma, em sua grande maioria, seguirão o caminho da dissolução e, inclusive, da negação de qualquer diferenciação entre clérigos e leigos. Na Igreja Católica Romana, o Concílio de Trento e as legislações dele derivadas, acentuarão a diferenciação e o distanciamento entre clérigos e leigos e a submissão destes a aqueles .
A criação de seminários para a formação do clero tem como finalidade formar quadros diretivos altamente especializados, longe da corrupção e das tentações do mundo e dos homens e mulheres – especialmente estas – comuns, ignorantes e tentadoras.
Depois do Concílio de Trento surgiu uma quantidade significativa de congregações que se identificarão não tanto por um estilo de vida, mas por uma missão específica. Uma característica quase geral destas novas congregações é o fato de serem vistas – e na maioria dos casos se assumirem como tal – como uma forma de presença da Igreja numa realidade marginal ou excluída do processo de modernização capitalista – agrícola, comercial ou industrial – da sociedade ocidental. Para isto, sublinha-se a necessidade da obediência das congregações à autoridade eclesiástica (papa e bispos).
Existe também o caso de congregações clericais que fazem surgir, a seu lado e numa relação de dependência, congregações femininas ou associações de leigos que executam tarefas de apoio à sua missão. As Ordens Terceiras, mesmo tendo outra origem e finalidade, são enquadradas dentro deste modelo.
O Concílio Vaticano I é o ponto de exacerbação, através da doutrina da infalibilidade papal, do modelo eclesiológico de centralização clerical excludente que sustenta esta ordem de coisas.
A reação, na sociedade, à clericalização excludente da Igreja, é o surgimento do laicismo: uma sociedade e uma cultura que se organizam prescindindo da presença da Igreja e, por uma equívoca assimilação entre Igreja e Deus, acaba prescindindo do próprio Deus. Este, mesmo que mantido no discurso, torna-se apenas uma entidade impessoal que em nada se interessa pelo mundo e pela humanidade (deísmo). Pode-se, sem dúvida, afirmar que o laicismo é uma reação patológica a uma configuração esquizofrênica de uma Igreja que não mais consegue reconciliar-se com o mundo e que, no interior de si mesmo, tem dificuldade em reconstruir uma relação harmoniosa e cooperante entre clérigos e leigos (cf. TAMAYO ACOSTA, 2009).
5 O Vaticano II e a tentativa de voltar a dialogar com o mundo leigo
A renovação da Igreja, da qual o Concílio Vaticano II é a expressão maior, tentará traduzir o desejo de uma Igreja Católica Romana em diálogo com a modernidade e na qual todos os cristão sejam participantes e membros ativos. A tarefa de renovação conciliar ficou, no entanto, a meio caminho. A tensão entre as diferentes e até contraditórias forças eclesiais presentes na Assembléia Conciliar fez que, nos textos conciliares, aparecessem duas distintas eclesiologias. Por um lado está a eclesiologia da Igreja Povo de Deus (LG 1-17). De outro, a eclesiologia que parte da compreensão hierárquica da Igreja (LG 18-38). São dois modos de compreender a Igreja que, mesmo não sendo mutuamente excludentes, revelam sensibilidades eclesiológicas divergentes.
Como dizíamos anteriormente, a razão da manutenção desta dupla eclesiologia é a incapacidade de superar de forma definitiva a dicotomia Igreja-mundo e passar a pensar a presença da Igreja no mundo a partir dos paradigmas da Encarnação e da Ressurreição. Ou seja, assumir radicalmente a compreensão cristã de salvação e suas conseqüências eclesiológicas e, dentro da eclesiologia, os ministérios.
A incapacidade de superação definitiva da dicotomia Igreja-mundo se reflete, por sua vez, na permanência da dicotomia clérigos-leigos na Igreja. Enquanto os primeiros se ocupam das realidades espirituais que dizem respeito à missão intra-eclesial, os leigos se ocupam das realidades temporais (cf. LG 31).
João Paulo II, na Exortação Pos-sinodal Christifidelis Laici (n. 9), retoma Lúmen Gentium e explicita a missão dos leigos no mundo:
Ao responder à pergunta “quem são os fiéis leigos”, o Concílio, ultrapassando anteriores interpretações prevalentemente negativas, abriu-se a uma visão decididamente positiva e manifestou o seu propósito fundamental ao afirmar a plena pertença dos fiéis leigos à Igreja e ao seu mistério e a índole peculiar da sua vocação, a qual tem como específico “procurar o Reino de Deus tratando das coisas temporais e ordenando-as segundo Deus”. “Por leigos — assim os descreve a Constituição Lumen Gentium – entendem-se aqui todos os cristãos que não são membros da sagrada Ordem ou do estado religioso reconhecido pela Igreja, isto é, os fiéis que, incorporados em Cristo pelo Batismo, constituídos em Povo de Deus e tornados participantes, a seu modo, do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, exercem pela parte que lhes toca, na Igreja e no mundo, a missão de todo o povo cristão”.
Mesmo tentando fazer um discurso positivo em relação aos leigos, permanece a divisão de trabalho religioso entre os cristãos. Há, conforme João Paulo II, como que uma “especialização de tarefas” no atuar cristão. Os clérigos se ocupam das coisas sagradas enquanto os leigos se ocupam das coisas do mundo como se, para Deus, as coisas do mundo não fossem, pelo fato da Criação, Encarnação e Ressurreição de Cristo, já situadas no âmbito da salvação, ou seja, sagradas…
Praticamente todos os documentos da Igreja permanecem dentro deste paradigma soteriológico e suas conseqüências eclesiológicas (cf. SOUZA, 1994, p. 216-217).
A VR, como todos o sentimos, sofre as conseqüências desta incompleta reformulação soteriológica e eclesiológica. A VR feminina, apesar de ser mais numerosa e de, muitas vezes, sustentar o labor cotidiano da Igreja, por sua condição de gênero, continua excluída das funções clericais e, por consequência, de toda possibilidade de protagonismo eclesiástico.
A VR masculina também sofre em si as consequências deste dualismo eclesiológico. Por um lado, pela assimilação da VR masculina à função clerical, a vocação do religioso leigo termina por ser vista como uma “vocação menor” ou não completamente plena. São religiosos “só irmãos”… Por outro, apesar de gozar de uma certa liberdade em seu campo específico de atuação (saúde, educação, assistência social…), estão sempre sob a possibilidade de ter sua vida e projetos supervisionados por uma autoridade externa, seja o pároco do lugar onde se encontram, ou o bispo.
As Ordens e Congregações Religiosas masculinas mistas, onde há clérigos e leigos, sofrem internamente também por viver em seu interior a assimetria resultante da disparidade na condição eclesial de clérigos e leigos. Disparidade da qual a impossibilidade de um leigo assumir uma função de superior maior é apenas uma – e com certeza a menos importante – das conseqüências.
Para terminar…
Voltar a tomar a sério a compreensão cristã de Salvação e suas conseqüências na Eclesiologia e, dentro da Eclesiologia, a compreensão dos ministérios, é um passo necessário para poder resgatar, tanto na vida da Igreja como na sociedade, a identidade da VR tirando-a do eixo vertical da hierarquia e colocando-a no seu verdadeiro lugar, o dos carismas na Igreja. E mais: isto será consequência da superação da divisão entre Igreja e mundo e sua conseqüência, a divisão entre clérigos e leigos, de modo que já não haja religiosos clérigos e religiosos leigos, mas, simplesmente, religiosos que sirvam a Deus, ao mundo e à Igreja conforme o carisma que Deus conceder a cada um.
Isto fará bem não apenas a nós, religiosos leigos e VR como um todo. Mas fará bem à Igreja como um todo que sofre para voltar a reconstituir-se como uma comunidade de iguais em Jesus Cristo (cf. FIORENZA, 1995).
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Fonte: www.crbpr.com.br